26.08.2019 - Brasília/DF - Jair Bolsonaro participa de cerimônia militar. Foto: Victor Ferreira.
Grande História

Como Jair Bolsonaro persegue adversários

O presidente brasileiro se habitou a usar a estrutura pública e mesmo uma agência clandestina de espionagem contra inimigos políticos.

26.08.2019 - Brasília/DF - Jair Bolsonaro participa de cerimônia militar. Foto: Victor Ferreira.

Já no segundo ano de mandato, ficou evidente que Jair Bolsonaro persegue adversários políticos fazendo uso de aliados dentro e fora do governo, da própria estrutura pública, e até mesmo de uma agência clandestina de espionagem que funciona dentro do Palácio do Planalto.

Evidências

Íntegra da reunião ministerial de 22 de abril de 2020

No trecho mais polêmico da reunião ministerial de 22 de abril de 2020Jair Bolsonaro relata:

  • Forças Armadas
    Que o serviço de inteligência das Forças Armadas não vazava a ele informações privilegiadas:
    • “Eu tenho as… As inteligências das Forças Armadas, que não tenho informações”, reclamou Bolsonaro.
  • Polícia Federal
    Que a Polícia Federal não vazava informações privilegiadas.
    • “Eu não posso ser surpreendido com notícias. Pô, eu tenho a PF que não me dá informações, reclamou Bolsonaro.
  • Agência Brasileira de Inteligência
    Que a ABIN, apesar do que chama de aparelhamento, compartilhava alguns dados de inteligência.
    • ABIN tem os seus problemas, tenho algumas informações. Só não tenho mais porque tá faltando, realmente, temos problemas, pô! Apatelhamento, etc”, observou Bolsonaro.
  • ABIN Paralela
    Que só um “sistema de informações particular” estaria funcionando como o presidente da República desejava.
    • “Sistemas de informações: o meu funciona. (…) O meu particular funciona”, confessou Bolsonaro.

Suspeitas

Jair Bolsonaro assume que possuía um áudio que complicaria Joice Hasselmann na Justiça.

O noticiário chegou a registrar suspeitas de que o Palácio do Planalto espionava alguns adversários políticos. E o próprio Bolsonaro deixou escapar em várias oportunidades que, de alguma forma, era abastecido com informações privilegiadas.

  • Arapongagem palaciana
    Ainda no primeiro semestre de 2019, período em que a relação de Bolsonaro com o Congresso Nacional foi mais conflituosa, parlamentares reclamaram a Rodrigo Maia que temiam estar sendo monitorados pelo Governo Federal. Alguns desconfiavam que foram gravados em conversas no próprio Palácio do Planalto. “Um deputado com patente militar, ligado à comunidade de tecnologia de segurança de informação” chegou a dar detalhes técnicos da invasão que teria sofrido em um celular Android. Questionado pelo presidente da Câmara Federal, Augusto Heleno confirma a existência da arapongagem, ainda que negue que seguisse ativa: “Isso aí já acabou“, teria respondido o chefe do Gabinete de Segurança Institucional.
  • Inteligência contra Witzel
    Ainda em dezembro de 2019, sem apresentar provas, Bolsonaro insinuou que Wilson Witzel teria “gravado conversa entre dois marginais citando meu nome para dizer que eu sou miliciano“. Na ocasião, afirmou que a fonte seria o que chamou de “inteligência“. Meses depois, revelaria que a tal inteligência se tratava de “amigos policiais civis e policiais militares no Rio de Janeiro“.
  • ABIN e “militares do Exército” contra o ministro da Saúde
    Em abril de 2020, sabotando o combate ao coronavírus tocado por Luiz Henrique Mandetta, Bolsonaro deu a espiões da ABIN (e ao que a revista Veja chamou de “militares do Exército”) a missão de montar um dossiê contra o ministro da Saúde.
  • Inteligência contra Rodrigo Maia, João Doria e parte do STF
    Um dia após a demissão de Mandetta, veio a notícia de que o presidente comentava com parlamentares que havia recebido da “inteligência” informações de que Rodrigo Maia, João Doria e parte do STF estariam se articulando para derrubá-lo. Na reunião ministerial do 22 de abril de 2020, o presidente chega a reclamar de um pessoal que estaria “se reunindo de madrugada, pra lá, pra cá“. Era uma referência à suposta articulação do presidente da Câmara.
  • Áudio contra Joice Hasselman
    Ao final daquele mês, Bolsonaro insinuou que teria um áudio que faria de Joice Hasselmann investigada por disseminação de fake news. No mesmo 28 de abril, o Jornal da Record apresentaria um áudio em que a deputada federal solicitava a criação de perfis falsos para defendê-la nas redes sociais.
  • Acesso ao depoimento de Moro
    Já em maio de 2020, dois dias antes de a PF tornar público o depoimento que Moro prestara a respeito da interferência presidencial na própria corporação, Bolsonaro deu a entender que tivera acesso precoce aos relatos do ex-ministro da Justiça.
  • Dossiê contra Witzel
    Mas nada chamou mais atenção do que o ocorrido em 26 de maio de 2020, quando a mesma PF cumpriu mandados de busca e apreensão no gabinete do governador do Rio de Janeiro. As denúncias apuradas saíram de um dossiê contra Wilson Witzel que passara pelas mãos de Bolsonaro antes de chegar, por intermédio de um aliado, a Augusto Aras, na Procuradoria-geral da República. Naquela semana, Filipe MartinsCarla Zambelli e Eduardo Bolsonaro deram a entender que sabiam antecipadamente que desafetos de Bolsonaro em breve teriam problemas com a Justiça.

Agência Brasileira de Inteligência

Paralela

Sem perceber, a imprensa batizou o “sistema de informações” particular de Bolsonaro ainda no segundo mês do mandato. Porque a primeira manchete sobre a “ABIN Paralela” data de 17 de fevereiro de 2019. Tratava-se de uma sandice de Carlos Bolsonaro que contava com a participação de Alexandre Ramagem, mas seria vetada por Gustavo Bebianno e Carlos Albertos dos Santos Cruz. Com o veto inicialmente atribuído a Augusto Heleno, na época não foi percebida a estranha coincidência de Bebianno ser demitido um dia após a agência clandestina de espionagem virar notícia.

Questionado por Rodrigo Maia, que reportava o temor parlamentar de uma arapongagem presidencial, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional garantiria que “isso aí já acabou“. Mas, apenas três dias após a queda de Bebianno, Marcelo Costa Câmara foi nomeado Assessor Especial do Gabinete Pessoal do Presidente da República. Apesar do cargo pomposo, o coronel do Exército comandaria a tal ABIN Paralela dentro do Palácio do Planalto. Mais adiante, vazariam à imprensa que o araponga contava com o auxílio de Márcio Cavalcante de Vasconcelos, um tenente-coronel da Polícia Militar do Distrito Federal.

Co-autor do veto que nada vetou, Santos Cruz findou demitido em junho de 2019. Ou justamente quando a ABIN Paralela conseguiu provas de que o então secretário de governo havia criticado o presidente da República em uma conversa com colegas militares. Um mês depois, sem Santos Cruz para atrapalhar, Carluxo emplacou Ramagem na direção-geral da ABIN.

Aparelhada

Ao final do ano, os gastos sigilosos da Agência Brasileira de Inteligência tinham mais que dobrado. Mas Heleno, ao que tudo indica, não se incomodou. Tanto que, em fevereiro de 2020, delegou a Ramagem poderes para:

  • Conceder diárias e passagens a servidores ligados à agência;
  • Autorizar e prorrogar contratos;
  • Dispensar licitações.

Ainda aos cuidados do homem de confiança de Carluxo, a ABIN pediria ao Serviço Federal de Processamento de Dados acesso a fotos e informações pessoais de mais de 76 milhões de brasileiros que possuem carteira de motorista.

Uma semana após a reunião ministerial de 22 de abril, a queda de Moro permitiu a Bolsonaro nomear Ramagem ao comando da PF, mas a decisão seria contida no STF por Alexandre de Moraes. O cargo, no entanto, foi entregue a Rolando Alexandre. Desta forma, o braço-direito do braço-direito de Carluxo pode assumir o posto com a missão de aproximar a PF da ABIN.

Centro de Inteligência Nacional

Em decreto do final de julho de 2020, Bolsonaro não só criou novos cargos na agência, como deu vida ao Centro de Inteligência Nacional, um novo órgão que contaria com 17 agentes para “planejar e executar ações de inteligência voltadas ao enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da sociedade”. Em paralelo, Heleno estudava no GSI a criação de uma norma que permita punir servidores até mesmo pelo que publicam em perfis privados nas redes sociais, o que abriria uma brecha para avançar contra o aparelhamento do qual Bolsonaro reclamava na ABIN.

Foi quando “a grande ficha caiu”, e o STF decidiu por 9 a 1 que a espionagem da agência deveria se ater a um mínimo de interesse público. Quatro dias depois, contudo, o plano seguiu adiante, com Ramagem usando o decreto de Bolsonaro para reposicionar 83 servidores na agência.

Ministério da Justiça e Segurança Pública

Nos 512 dias em que integrou o governo Bolsonaro, Sergio Moro chegou a usar a estrutura do Ministério da Justiça contra adversários políticos de Jair Bolsonaro:

  • LSN contra Lula
    Em 11 de novembro de 2019, Bolsonaro disse que, caso Lula liderasse protestos violentos, o Governo Federal poderia fazer uso da Lei de Segurança Nacional contra o ex-presidente.
    • “Temos uma Lei de Segurança Nacional que está aí para ser usada. Alguns acham que os pronunciamentos, as falas desse elemento, que por ora está solto, infringem a lei. Agora, nós acionaremos a Justiça quando tivermos mais do que certeza de que ele está nesse discurso para atingir os seus objetivos. Você pode ver no Chile, o presidente Piñera demitiu todos seus ministros, pediu perdão e continua a mesma coisa”, alertou Bolsonaro.
  • MJSP contra Lula
    Em fevereiro de 2020, o Ministério da Justiça informou que, ainda em novembro de 2019, justamente com base na Lei de Segurança Nacional, Moro havia pedido à PF um inquérito para apurar uma fala em que Lula, sem apresentar provas, sugere que Bolsonaro seria um miliciano que governa o país com a ajuda dos responsáveis pela morte de Marielle Franco.
    • “Não é possível que um país do tamanho do Brasil tenha o desprazer de ter no governo um miliciano responsável direto pela violência contra o povo pobre, responsáveis pela morte da Marielle, responsáveis pelo impeachment da Dilma”, disse Lula.
  • Assumiu o erro
    Cinco dias depois, o próprio Ministério da Justiça, negando que a apuração tivesse por base a Lei de Segurança Nacional, assumiu que errara ao transmitir a informação.
  • Ao arquivo
    Três meses depois, o Ministério Público Federal pediria o arquivamento do inquérito alegando que Lula não cometera qualquer crime ao tratar Bolsonaro como miliciano.
  • Facada Fest
    Ainda em fevereiro de 2020, o Ministério da Justiça pediu a abertura de um inquérito à PF para investigar a organização do Facada Fest, um festival de punk rock paraense que, nas peças de divulgação, apresentava imagens de um palhaço Bozo morto com um lápis enfiado na garganta, além de caricaturas de Bolsonaro associando-o ao nazismo.

Na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, Bolsonaro reclamou que a Polícia Federal não antecipava detalhes de investigações que ainda o surpreendiam. Encarando Moro, o presidente explicou que, “por isso, vou interferir! E ponto final“. E cumpriu a promessa dois dias depois, quando exonerou Maurício Valeixo do comando da PF, o que forçou a demissão do ministro da Justiça na mesma manhã.

Em 28 de abril de 2020, André Mendonça assumiu o ministério da Justiça. Um mês depois, ou seis após Bolsonaro se decidir por um golpe que não se concretizaria contra o STF, ou ainda 48 horas após Alexandre de Moraes cercar o Gabinete do Ódio com auxílio da PF, o ministro “terrivelmente evangélico” ampliou o sistema de informações de Bolsonaro agregando a espionagem das Polícias Militares ao Ministério da Justiça.

Dossiês

Em 2008, o governo Lula viveu uma das piores crises quando tornou-se público que a Casa Civil havia produzido um dossiê contra o casal Fernando Henrique Cardoso e Ruth Cardoso. Dilma Rousseff até conseguiria reverter o estrago em uma resposta histórica sobre sessões de tortura sofridas na ditadura militar, mas a convocação da ainda ministra para esclarecimentos no Senado denotava a gravidade com que um documento do tipo era encarado no meio político.

Dilma Rousseff sabatinada pelo senador José Agripino, em 2008

Em julho de 2020, veio a público que André Mendonça utilizara a Secretaria de Operações Integradas, um órgão federal criado no primeiro dia do governo Bolsonaro com o objetivo de investigar o crime organizado e pedófilos, para produzir um dossiê contra 579 servidores federais e estaduais de segurança (além de três professores universitários) que estariam militando contra o fascismo sob a alcunha de “antifas“. O barulho da notícia chegou à ONU, colocando o Brasil sob risco de integrar a “lista suja” de países autoritários que intimidam opositores.

A SEOPI vinha sendo comandada por dois servidores nomeados por Mendonça ainda no primeiro mês como ministro da Justiça. Com nome, foto e alguns perfis dos alvos nas redes sociais, o documento foi carimbado com “acesso restrito”, o que poderia mantê-lo sob sigilo por até um século. Mesmo assim, foi distribuído a ao menos oito estruturas públicas:

  1. Polícia Federal
  2. Centro de Inteligência do Exército
  3. Polícia Rodoviária Federal
  4. Agência Brasileira de Inteligência
  5. Força Nacional
  6. Um “centro de inteligência” vinculado à SEOPI na região Sul
  7. Um “centro de inteligência” vinculado à SEOPI na região Norte
  8. Um “centro de inteligência” vinculado à SEOPI na região Nordeste

Reação

A reação veio com uma agilidade incomum às arbitrariedades do governo Bolsonaro. Três dias após a reportagem que deu início à série, o Ministério Público Federal instaurou um procedimento para investigar a motivação do relatório. Em 4 de agosto de 2020, apontando a gravidade do que chamou de “comportamento incompatível com os mais basilares princípios democráticos do Estado de Direito“, Cármen Lúcia deu dois dias para o Ministério da Justiça explicar-se sobre o dossiê.

De início, André Mendonça negou que a SEOPI perseguisse “quem quer que seja“, garantiu não admitir perseguição a “grupo de qualquer natureza“, mas defendeu em nota o monitoramento de servidores. Ainda em 3 de agosto de 2020, o ministro demitiu o diretor do SEOPI prometendo uma apuração interna no trabalho da secretaria. Para a vaga do coronel Gilson Libório Mendes, escolheu Thiago Marcatonio, delegado da PF.

Quando se esgotou o prazo estipulado pela ministra, Mendonça se negou a entregar o dossiê ao Supremo. No dia seguinte, contudo, o ministro já confirmava a existência do dossiê, ainda que sem apresentá-lo a uma comissão do Congresso. Quatro dias depois, o Ministério da Justiça entregou o levantamento aos parlamentares.

Cármen Lúcia determinou que os documentos deveriam ficar sob sigilo. Antes de o STF se debruçar sobre o material, argumentando que o dossiê não passava de um relatório de inteligência para antecipar riscos à segurança pública, Augusto Aras protagonizou um dos momentos mais infelizes da Procuradoria-geral da República. Mas não convenceu. Por 9 a 1, a Suprema Corte barrou a produção e utilização do material, ainda que aliviasse a situação de Mendonça ao ponto de Gilmar Mendes e Dias Toffoli se permitirem respectivamente argumento estapafúrdio e elogios em benefício do ministro.

Lei de Segurança Nacional

No dia seguinte, por determinação de Mendonça, a Polícia Federal usava a Lei de Segurança Nacional para colher o depoimento de um colunista da Folha de S.Paulo que havia cometido o infeliz artigo em que, na manchete, admitia torcer pela morte de Bolsonaro.

A Lei de Segurança Nacional é uma das heranças mais controversas da ditadura militar, que a utilizava como instrumento jurídico contra opositores. Com menos de 20 meses de mandato, Bolsonaro estava a um inquérito de igualar o recorde de 31 instaurados nos 65 meses em que Dilma Rousseff presidiu o Brasil. A sede de perseguição é tamanha que o presidente já ameaçou fazer uso da LSN até contra Sergio Moro, ex-ministro que chegou a ser considerado o maior trunfo do próprio governo Bolsonaro.

Reincidência

Mas essa não foi a única vez que o bolsolavismo elaborou dossiês contra militantes antifascistas. Em junho de 2020, Douglas Garcia anunciou nas próprias redes sociais que havia produzido um dossiê com nome, local de trabalho e foto de cerca de mil pessoas que, segundo o deputado estadual, seriam antifas. O próprio parlamentar envolveu no episódio os nomes de Gil Diniz e Eduardo Bolsonaro, ambos do PSL paulista, entregando que o filho do presidente teria repassado o material à diplomacia americana, registro que a embaixada dos Estados Unidos nega existir. Em agosto de 2020, Garcia foi condenado na Justiça a pagar 20 mil reais de indenização a um alvo que se sentiu lesado por integrar a lista.

Fontes

Esse texto só pôde ser escrito graças ao trabalho de uma imprensa profissional que apurou as informações referenciadas mais acima, e que aqui embaixo é reverenciada: BR Político, CNN Brasil, Correio Braziliense, Crusoé, Época, Estadão, Folha de S.Paulo, G1, O Antagonista, O Globo, Piauí, Poder 360, The Intercept Brasil, UOL e Veja.

Não existe país decente sem imprensa livre.

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