Não é de hoje que se fala em taxar livros e outros produtos culturais. Na verdade, este movimento é tão antigo quanto a própria escrita. Gutenberg passou poucas e boas para conseguir publicar a Bíblia que iria aumentar o acesso ao livro (e olha que era O livro). Durante a inquisição, milhares de títulos foram censurados, queimados ou demonizados. O mesmo durante tantos outros regimes totalitários, do nazismo à ditadura militar brasileira. Mas por que livros são tão perigosos e parecem ameaçar tanto o governo Bolsonaro?
Em janeiro de 2019, dois dias após Jair Bolsonaro tomar posse, começou o embate do Governo Federal contra os livros. Uma das primeiras lambanças feitas no atual mandato consistiu na publicação de um edital modificando as regras do Plano Nacional do Livro Didático. Dele foram retiradas, por exemplo, as exigências de referências bibliográficas nas obras, além da supressão do compromisso com a diversidade de etnias, gêneros, agenda não violenta contra a mulher e promoção de cultura quilombola e dos povos do campo, entre outros. À época, sob o ministro Ricardo Vélez Rodrigues, o MEC se defendeu argumentando que o documento seria de responsabilidade do governo Temer, que negou qualquer participação no caso.
Vale lembrar que o PNLD não é algo novo. A primeira estruturação do programa aconteceu em 1937, ainda como Instituto Nacional do Livro. Em 1985, junto com a redemocratização do Brasil, recebeu a nomenclatura atual, e o objetivo principal de garantir a qualidade dos livros ofertados aos alunos de escolas públicas de todo o país. Desta forma, o PNLD possui regras e análises que verificam a acurácia das informações e adequação das obras às faixas etárias para as quais serão distribuídas. Além disso, assegura a acessibilidade dos títulos à inclusão de pessoas com deficiência na educação brasileira.
A cruzada ganha aliados
Ainda em 2019, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, houve mais um ataque às letras. Desta vez, fiscais da prefeitura carioca invadiram estandes em busca de material inapropriado para crianças –leia-se, uma HQ na qual dois heróis se beijam– e geraram manifestações das editoras e do público do evento, bem como de autoridades. Mas a tentativa de censura acabou vetada pela justiça carioca. Os livros sob julgamento foram vendidos em minutos.
Marcelo Crivela se manifestou no Twitter, seguindo a prática adotada pelo líder máximo da nação e grande aliado do prefeito, dizendo que era dever do Estado proteger as crianças e os jovens de discursos de doutrinação.
Agora, em 2020, outra polêmica neste contexto se deu pela determinação do recolhimento de 43 títulos pelo Governo de Rondônia, sob a alegação de conteúdo inadequado para crianças e adolescentes. Entre os títulos, clássicos como Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Macunaíma, de Mário de Andrade, e Os sertões, de Euclides da Cunha.[3] Ao se espalhar, a notícia foi tratada como fake news pelo secretário de educação local, apesar de áudios e reproduções do próprio documento serem divulgados largamente.
Vale lembrar que o Estado em questão é governado por Marcos Rocha, coronel ultradireitista aliado de Bolsonaro, que se elegeu pelo PSL em meio à onda reacionária que, em 2018, se instalou no Brasil. Por causa da forte presença militar na fronteira com a Bolívia, e da maior concentração de evangélicos no País, chegando a um terço da população local, Rondônia é comandada pela tríade “bala, boi e bíblia” desde então.
PNLD sob ataque, novamente
Ainda em 2020, o PNLD voltou a ser alvo de ações federais, desta vez numa tentativa de garantir “livros sem ideologia”. Na ocasião, Abraham Weintraub chegou a divulgar um vídeo no Twitter. Nele, o então ministro da Educação dizia que “[o livro didático] é para ensinar a ler, escrever, ciências, matemática, não é para doutrinar”.
À época, uma matéria do Estadão chegou a levantar o possível descarte de 2,9 milhões de livros adquiridos em governos anteriores, mas não distribuídos. Vale destacar também a fala do próprio Bolsonaro classificando os didáticos como produtos “péssimos” com “muita coisa escrita“.
Desde 2004, como forma de diminuir os custos e ampliar o acesso às obras, os livros eram isentos da contribuição de PIS/ Pasep e Cofins. Agora, na reforma tributária apresentada pelo Ministério da Economia, Paulo Guedes substitui essas taxas pela Contribuição Social sobre Operações de Bens e Serviços. Desta forma, o setor passaria a recolher 12% de alíquota.
Num momento em que o mercado editorial começa a se recuperar após anos em queda livre, um novo golpe foi dado, colocando todo o setor em alerta. Sofre toda a cadeia, especialmente as pequenas livrarias de bairro, que vinham revivendo a figura do livreiro no ambiente onde se respira livros. Perde um incontável número de editoras independentes que trabalham para dar voz a autores desconhecidos. E sofrem os leitores, em especial, os mais pobres.
O ministro argumenta que o livro seria um produto de elite comprado por quem tem condições de pagar. Em 10 de agosto, Luiz Schwarcz assinou um artigo na Folha de S. Paulo questionando até quando a educação dos mais pobres continuará refém das escolhas do Estado, uma vez que Guedes usa doações como contra-argumento à possibilidade do aumento de preços.
O editor da Companhia das Letras ressalta que, em pesquisa realizada na última Bienal do Rio (aquela da tentativa de censura por parte da prefeitura carioca), grande parte dos mais de 600 mil visitantes eram jovens da classe C. Outro dado que desmonta o argumento do produto da elite vem da última Feira Literária das Periferias (Flup), que registrou 97% dos visitantes como leitor frequente de livros. Dois terços do público do evento eram das classes C, D e E.
Em um texto de 1988, Antônio Cândido coloca a literatura como um direito humano, portanto, algo que não se pode negar a ninguém. Ficando a pergunta: até quando cultura e educação serão tratadas como um luxo, um produto da elite, restando aos mais carentes fragmentos do que alguns “iluminados” acham essencial e até mesmo seguro à compreensão do povo?
