Opinião

Liberais não mentem ao dizer que inflação prejudica os mais pobres; mentem quando fingem se importar

A eleição em que Lula fez de Dilma Rousseff a sucessora teve uma característica inusitada: nenhum grande candidato oferecia um caminho alternativo ao que o Partido dos Trabalhadores trilhava, mas apenas promessas de que executaria com mais esmero o plano bem avaliado da gestão. Contra as previsões mais catastróficas, o aguardado tsunami da crise do subprime não só despontava como uma marolinha, como logo se convertia numa onda a favor do governo, que fechava 2010 com um crescimento econômico só comparável ao chinês. Nem a Economist imaginava que, dali a cinco anos, o país entraria numa recessão profunda. Mas o efeito imediato foi de fato positivo.

De uma maneira geral, a elite liberal do país precisou rever as próprias certezas. Nas redes sociais, o PT discursava sem grande concorrência. E tudo que não fosse petismo era visto como inimigo dos programas sociais que amarravam tantos votos.

Já no início da temporada seguinte, os adversários reagiram. Blogs e perfis despontaram oferecendo uma leitura alternativa do noticiário. Mais ainda: influenciadores assumiram o microfone argumentando que as ideias liberais, a despeito da sensação deixada durante os quase dez anos em que o país esteve aos cuidados de FHC, não eram inimigas do povo. Muito pelo contrário, ofereciam um modelo eficiente para que os recortes mais oprimidos da população vencessem a opressão.

O eleitor gostava do Bolsa Família? Tratava-se de um programa inspirado nos vouchers que tanto empolgavam liberais. A população negra demandava mais poder? A abolição da escravatura nasceu de esforços dos liberais. Mulheres reclamavam direitos? Nenhuma ideologia produziu líder mais forte que Margaret Thatcher.

As respostas fáceis e prontas eram distribuídas em grupos de discussão, lives (chamadas à época de ‘hangout’) e postagens que viralizavam nas redes sociais. E engajavam de tal forma que a criação de um novo partido que representasse o grupo ganharia corpo nas avenidas mais disputadas do país.

Os esforços renderam resultado. O novo partido nasceu sob o nome de Novo. Quando Jair Bolsonaro surgiu na disputa presidencial, não se dizia conservador, mas liberal. Para se eleger, primeiro convocou um defensor do liberalismo para empolgar o mercado. E fez tanto voto que, por tabela, elegeu no partido ao lado o governador do segundo maior estado na nação.

Já no ano seguinte, o desastre era perceptível. Bolsonaro não governava para oprimidos, mas opressores. Ou, como prometeu em campanha, atuava para que minorias se curvassem a maiorias. Mas nada disso abalava o playground dos liberais, mais conhecido como mercado financeiro. Quando cobrados a reprovar os absurdos do mandatário da nação, alguns dos principais atores se limitavam a argumentar que apenas reagiam aos índices econômicos, e estes animavam o time. Ninguém lembrava que a década se iniciou com influenciadores vendendo uma preocupação social que, restava evidente, inexistia.

Agora, com o poder de volta a Lula, insistem no discurso de que nada devem aos seres, mas apenas aos números. Quando muito, alegam que os ajustes do governo eleito hão de gerar inflação, o que fatalmente prejudicará os mais pobres — preocupação que não houve quando Bolsonaro incentivou uma gigantesca massa de ignorantes a correr riscos numa pandemia que matou quase 700 mil brasileiros.

Os liberais não mentem quando apontam a inflação como um flagelo aos mais humildes. Mentem quando fingem se importar. Ainda que celebrem vitórias em cargos menores, não perderam a eleição principal por outro motivo. O modelo defendido enriqueceu alguns milhares enquanto empobrecia milhões — entre os que sobreviveram.

É nítido que o atual governo preparou um orçamento para, em caso de derrota, deixar o sucessor incapaz de manter programas sociais a pleno vapor. Com o ‘orçamento secreto’, Bolsonaro conseguiu infringir a lei eleitoral referendado por uma votação quase unânime no Senado. Sabia que, se reeleito, faria o que quisesse com esta jovem democracia, incluindo a conversão em ditadura.

Com Bolsonaro fora, é preciso reconstruir o país. E isto começa pela atenção aos mais necessitados, ou o recorte da população que só vai à Faria Lima pedir esmola. Nada disso é possível sem orçamento. O Brasil vai voltar a ser o paraíso do rentismo? Talvez não precisasse ser se, há poucos anos, o mercado buscasse enxergar um pouco além dos gráficos.

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