Grande História

O que o governo de Jair Bolsonaro não quer que você saiba

08.07.2020 - Brasilia/DF - Jair Bolsonaro toma café após anunciar que estava com covid-19. Foto: RS.

Desde o início, o governo Bolsonaro trabalha para dificultar o acesso a informações cruciais — mas a democracia resiste.

Lucas Furtado pediu o afastamento de Fabio Wajngarten ao Tribunal de Contas da União. O subprocurador-geral do Ministério Público concordou que o secretário de Comunicação da Presidência da República descumprira a decisão da Controladoria-Geral da União. Em fevereiro, a CGU tinha dado dois meses para que fossem divulgados detalhes de campanhas virtuais veiculadas entre janeiro e novembro de 2019. Mas a SECOM liberou dados referentes a apenas 38 dias entre junho e julho, e ainda negou-se a atender um pedido de O Globo via Lei de Acesso à Informação.

O caso está longe de ser uma exceção. Ainda no primeiro mês de governo, com Hamilton Mourão no exercício da Presidência, o Governo Federal entregou a mais de 2 mil pessoas o poder de decretar sigilo de 25 anos em dados públicos. Na ocasião, alegaram que o decreto estava pronto desde o governo de Michel Temer. Meses depois, contudo, descobriram que a alteração na LAI havia ocorrido justamente na data em que fraudaram os registros de controle de ponto de uma ex-assessora suspeita de atuar como funcionária fantasma do senador Flávio Bolsonaro.

Dificuldade no rastreamento

Foi também em janeiro que Jair Bolsonaro assinou um decreto ampliando a posse de armas no Brasil. De imediato, o Exército alertou que “munição recarregada“, uma das exigências de Eduardo Bolsonaro, era “questão extremamente sensível, posto que enseja dificuldades em seu rastreamento“. No que o Senado derrubou o decreto, e a Câmara sinalizou intenção semelhante, o presidente da República achou por bem colocar o fim da identificação das munições policiais em um projeto de lei.

A pedido

O desvio de armas e munições para clubes de tiro, traficantes e milicianos tornou-se rotina na atual gestão. O Comando Logístico do Exército até buscou formular uma nova legislação para contornar o problema. Mas, em abril de 2020, as portarias preparadas pelo grupo de trabalho foram revogadas a pedido do próprio Bolsonaro.

Aumento de 120%

No segundo mês da gestão, Augusto Heleno compartilhou com outros 12 funcionários da Agência Brasileira de Inteligência o poder, até então exclusivo do chefe do Gabinete de Segurança Institucional, para decretar sigilo de até 25 anos em documentos secretos. Ao fim de 2019, os gastos secretos da ABIN saltavam de R$ 9,9 milhões para R$ 21,8 milhões, um crescimento de 120% em relação ao ano anterior.

93 anos

Em março de 2019, o comando da Marinha pediu 93 anos de prazo para liberar o acesso a documentos que acabavam de perder o sigilo. O órgão era, sozinho, responsável por 96% dos documentos classificados como sigilosos no Governo Federal. No mês seguinte, o presidente acabou com conselhos e comissões que identificavam corpos de desaparecidos políticos em mais de mil caixas com ossadas do cemitério de Perus, na zona oeste de São Paulo.

Gol contra

Ainda naquele abril, o partido do presidente entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF contra a legislação que, dentre outras coisas, exigia mais transparência dos clubes de futebol. Dias depois, para discutir o aumento das receitas no esporte mais popular do país, Bolsonaro recebeu os presidente da CBF e da FIFA no Palácio do Planalto.

Sigilo em estudo

Foi também naquele abril que o Ministério da Economia decretou sigilo sobre os estudos que serviram de base à PEC da Previdência, ou basicamente à reforma mais importante que este governo —e esta geração— aprovou.

Informaram e foram exonerados

Em julho de 2019, quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais alertou que o desmatamento na Amazônia havia crescido 88% no mês anterior, o presidente acusou o órgão de agir “a serviço de uma ONG“. No que o diretor do INPE rebateu as acusações, e se recusou a pedir demissão, o presidente esperou a poeira sentar, mas o demitiu. Em 2020, aconteceu outro episódio semelhante. Houve mais um recorde nos alertas de desmatamento. Três dias depois, a coordenadora-geral de Observação da Terra foi exonerada do mesmo instituto.

Sem registro de visitantes

Em agosto de 2019, o governo Bolsonaro decretou sigilo de 5 anos nos registros de visitantes das residências oficias do presidente e vice-presidente. Agora se sabe que, entre o mês seguinte e junho passado, Frederick Wassef, que negava conhecer o paradeiro de Fabrício Queiroz enquanto o ex-faz tudo da família Bolsonaro se escondia da imprensa numa casa do advogado, esteve ao menos seis vezes no Palácio da Alvorada, e treze vezes no do Planalto — apenas duas destas constavam na agenda oficial.

Fila de espera

Em novembro de 2019, o Ministério da Cidadania ignorava um pedido da Câmara Federal e solicitações via LAI para apresentar explicações sobre cortes no Bolsa Família. Em off, membros da gestão comentavam que a fila de esperava já atingia 700 mil famílias.

Fez o diabo

Ao fim do primeiro ano de governo, foram mantidos em sigilo os detalhes de 90% dos R$ 16,5 milhões dos gastos pela Presidência da República com cartões corporativos. Era o maior valor desde 2014, quando Dilma Rousseff, no quarto ano de mandato, fez o diabo para se reeleger.

Fiquem sabendo

Bolsonaro iniciou o segundo ano de mandato alegando que abria a “remuneração dos servidores aposentados e pagamentos aos pensionistas do Poder Executivo” em esforço junto à CGU para fortalecer “a transparência em defesa do interesse público“. A verdade, no entanto, é que o presidente, após seguidamente tentar barrar a decisão, fora obrigado a tomar a iniciativa após o TCU acatar uma denúncia feita 3 anos antes pela Fiquem Sabendo, agência especializada na Lei de Acesso à Informação.

Violência policial

Em junho, o ministério comandado por Damares Alves sonegou dados sobre a violência policial no relatório que a própria pasta divulga sobre direitos humanos. Horas após a Justiça dar cinco dias para as informações serem apresentadas, elas foram entregues. E eram positivas ao governo Bolsonaro, uma vez que observavam uma primeira queda após quatro anos de alta.

Armadilhas

O que faz um governo ocultar até mesmo conteúdo que renderia manchetes favoráveis? Foi também o que todo mundo se perguntou quando, em maio, Bolsonaro finalmente apresentou os laudos que comprovariam que não tivera covid-19 em março. Nesse intervalo, até um caríssimo e desnecessário projeto de João Otávio de Noronha voltou à pauta dias após o presidente do STJ suspender a decisão que obrigava o presidente da República a apresentar o exame que exibia aos colegas na reunião ministerial ocorrida semanas antes.

Mais exame

Em meio à maior emergência sanitária em um século, a imprensa e a Justiça perderam tempo caçando uma informação que poderia ser fornecida pelo presidente desde o primeiro instante, como ocorreria, por exemplo, em julho, quando o maldito testou positivo para novo coronavírus. Uma semana depois, contudo, uma nova confusão: a SECOM negou que o presidente se submetera a um segundo teste, mas o próprio Bolsonaro confirmaria que havia novamente testado positivo.

Esconde, esconde

No entanto, nada causa mais indignação do que os esforços presidenciais para que o povo brasileiro não tenha acesso a informações relevantes da pandemia em curso. Ainda em março, o Ministério da Saúde escondeu as projeções mais pessimistas. Em junho, já sem ministro da Saúde, o governo passou a sistematicamente atrasar a divulgação de boletins estatísticos, e trabalhou para implementar um método que ocultaria 44% das mortes por coronavírus. De quebra, excluiu registros relevantes da síndrome respiratória aguda grave, dificultando o trabalho de pesquisadores. Até a ABIN, que produzia relatórios para consumo interno, era pressionada pelos militares para que os dados da pandemia fossem maquiados.

Fuga

Vale ainda destaque às inúmeras vezes em que o presidente fugiu de coletivas ao ouvir perguntas incômodas. E à manutenção em arquivo de uma pesquisa que nega a existência de uma “epidemia de drogas“, narrativa encampada ainda no governo Temer por Osmar Terra, um dos conselheiros que mais tentam convencer o atual presidente a sabotar o isolamento social.

Aos inimigos, a lei

De uma maneira geral, Jair Bolsonaro só demonstra um genuíno interesse em transparência pública se há risco aos adversários políticos. Foi o que aconteceu quando decretou que entidades do “Sistema S”, um alvo constante de Paulo Guedes, deveriam detalhar publicamente os próprios gastos. Ou quando forçou a demissão de Joaquim Levy alegando que o 37° presidente do BNDES não abria uma suposta “caixa-preta” com dados das gestões petistas — missão que, aos cuidados do sucessor, custou R$ 48 milhões aos cofres públicos, mas nada de irregular encontrou.

Lado positivo

Uma notícia boa é que a democracia tem resistido. De acordo com um levantamento da FGV, um amplo leque de recursos vem forçando a administração a ser transparente como as anteriores. Vale destaque ainda à cooperação da imprensa, que até um consórcio lançou para monitorar dados da covid-19. A situação, contudo, segue longe do ideal. Tanto que, recentemente, servidores federais organizaram um “assediômetro” para denunciar ataques a órgãos de controle.

João 8:32

É por demais irônico —para não dizer trágico— que o mesmo presidente a adotar o “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” como bordão dedique-se tanto a ocultá-la. Certamente sabe que, ao “conhecer a verdade”, o Brasil dá um primeiro passo para que se liberte dele.

Fontes

Esse texto só pôde ser escrito graças ao trabalho de uma imprensa profissional que apurou as informações referenciadas mais acima, e que aqui embaixo é reverenciada: BBC Brasil, BR Político, Correio Braziliense, Crusoé, Diário de Pernambuco, Época, ESPN, Estadão, Exame, Fiquem Sabendo, Folha de S.Paulo, G1, O Antagonista, O Globo, Poder 360, The Intercept Brasil, UOL, Valor Econômico e Veja.

Não existe país decente sem imprensa livre.

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