Grande História

Ingrediente de bomba relógio

25.06.2020 - Brasília/DF - Jair Bolsonaro assina do termo de posse de Carlos Alberto Decotelli, ministro da Educação. Foto: Marcos Corrêa/PR

Dos netos de José Sarney a Carlos Alberto Decotelli, fraudes acadêmicas que, até o momento, só causaram um prejuízo real.

Desde fevereiro de 2009, José Sarney cumpria um terceiro mandato como presidente do Senado. Alguns meses depois, veio à tona que João Sarney, neto do ex-presidente da República, recebera por 18 meses um salário de R$ 7,6 mil para, mesmo sem terceiro grau, trabalhar no gabinete de um aliado do avô.

No que o STF proibiu em 2008 o nepotismo no poder público, o garoto de 22 anos foi exonerado em um ato secreto, mas a função seria repassada à própria mãe, uma ex-candidata a Miss Brasília.

Tráfico de influência

A situação se complicou quando, em junho de 2009, chegou às manchetes que uma empresa de Adriano Sarney, outro neto do senador, era investigada pela Polícia Federal por suspeita de tráfico de influência na casa em operações de créditos consignados.

Harvard

Para se distinguir do primo e alegar que não dependia do avô para os negócios, Adriano enfatizava que teria formação em Sorbonne, com pós-gradução em Harvard. Foi quando a imprensa descobriu que, na verdade, a “pós-graduação” não passava de um curso de extensão sem qualquer processo seletivo.

Relações exteriores

A fraude no currículo abriu caminho para que o jornalismo também detalhasse o caso de Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores que se apresentava como doutor pela London School of Economics sem jamais ter concluído o doutorado.

Nem um, nem outro

Ainda no embalo, veio a notícia de que Dilma Rousseff, chefe da Casa Civil que exibia no currículo Lattes um mestrado e um doutorado pela Unicamp, não havia concluído nem um, nem outro.

Um advogado desses

A ministra contou com a defesa de Aloizio Mercadante. Mas logo lembraram que o senador anunciara em debate os títulos de mestre e doutor pela mesma Unicamp, coisas que também inexistiam.

50%

Ainda em 2009, por obra da indicação de Dias Toffoli ao STF, veio a notícia de que 70% dos membros Supremo apontavam algum doutorado na biografia. Mas Cezar Peluso e Cármen Lúcia cumpriram os créditos sem jamais defenderam a tese.

Harvard II

Quando, em 2012, disputou a prefeitura de Porto Alegre, Manuela d’Ávila dizia no programa eleitoral que estudara gestão pública em Harvard — a deputada federal tinha meramente participado como ouvinte de um simpósio de três dias.

Lost in translation

Em 2016, da disputa pela prefeitura do Rio, Pedro Paulo dizia ter mestrado pela UFF, enquanto Marcelo Crivella alegava ser doutor pela Universidade de Pretória, na África do Sul. Mas Pedro nunca entregou a tese. Quanto a Crivella, reclamou que um erro de tradução converteramaster degree” em “doutorado”.

Ao mesmo tempo

No ano seguinte, quando Alexandre de Moraes foi indicado para uma vaga no STF, o então ministro da Justiça do governo Temer foi acusado de plagiar trechos de uma obra de um autor espanhol. Além disso, dizia no Lattes ter feito doutorado e pós-doutorado ao mesmo tempo.

Harvard III

Na corrida presidencial de 2018, era noticiado que Ciro Gomes estudara economia em Harvard. O presidenciável de fato foi aceito na instituição, mas não em um curso ministrado pela universidade, e sim como pesquisador visitante.

?!

Antes de, em 2019, virar ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves se apresentava como “mestre em educação“. Questionada a respeito, respondeu que “nas igrejas cristãs é chamado mestre todo aquele que é dedicado ao ensino bíblico”.

Culpa da assessoria

Ministro do Meio Ambiente no governo Bolsonaro, Ricardo Salles chegou a assinar uma coluna de opinião em 2012 como “mestre em direito público pela Universidade Yale“. Mas nunca estudou lá. Em 2019, culpou a assessoria de imprensa pelo erro.

Fake news

Dois meses depois, o próprio presidente da República anunciou o novo ministro da Educação como sendo “doutor”. Mas o doutorado de Abraham Weintraub era só mais uma das muitas mentiras que Jair Bolsonaro espalha nas redes sociais.

Harvard IV

Também em 2019, descobriram que Wilson Witzel estampava no Lattes um doutorado sanduíche em Harvard sem jamais ter passado por lá. O governador do Rio de Janeiro explicaria que apenas “incluiu a possibilidade de aprofundar os estudos em Harvard“.

Sucessor de Weintraub

No 25 de junho de 2020, Bolsonaro nomeou Carlos Alberto Decotelli como novo ministro da Educação. Mas logo descobriram que o sucessor de Weintraub havia plagiado outros trabalhos na dissertação de mestrado, fora reprovado na tese do doutorado, mentira sobre ter feito pós-doutorado na Alemanha, e exagerara no currículo militar e até no trabalho que desempenhara na FGV.

Por onde andam

Eleito para um quarto mandato como como presidente do Senado, José Sarney só deixou o comando da casa quatro anos após o escândalo envolvendo os netos.

Celso Amorim só deixou de ser ministro das Relações Exteriores quando Lula deixou de ser presidente do Brasil.

Dilma Rousseff só deixou de chefiar a Casa Civil em março de 2010, quando iniciou uma vitoriosa campanha presidencial.

Só após concluir o mandato como senador, Aloizio Mercadante concluiu o doutorado. Na sequência, assumiria três ministérios no governo Dilma.

Cezar Peluso seguiu como ministro do STF até que, em 2012, atingiu a idade limite —que na época era de 70 anos— para encerrar as atividades na casa.

Cármen Lúcia segue no Supremo e, se assim quiser e a saúde permitir, pode continuar lá até 19 de abril de 2029.

Segunda mais votada da disputa pela prefeitura de Porto Alegre, Manuela D’Ávila só deixou de ser deputada federal quando assumiu uma vaga como deputada estadual no Rio Grande do Sul em 2015.

Pedro Paulo foi o terceiro candidato mais votado na disputa de 2016, mas Marcelo Crivella venceu, e segue prefeito até hoje.

Aprovado por 55 dos 81 senadores, Alexandre de Moraes tem idade para atuar no STF até o ano de 2043.

Com mais de 13 milhões de votos, Ciro gomes terminou a eleição de 2018 em terceiro lugar, mas segue com o nome sondado por pesquisas a respeito da próxima eleição presidencial.

Mesmo falando na reunião ministerial de 22 de abril que trabalharia pela prisão de prefeitos e governadores, Damares Alves segue ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos.

Mesmo como principal responsável por uma crise ambiental que reverberou em todo o mundo, Ricardo Salles segue ministro do Meio Ambiente do governo Bolsonaro.

Mesmo demitido sob fortes críticas após defender a prisão de todos os ministros do STF, Abraham Weintraub foi indicado para ocupar um cargo de diretor no Banco Mundial.

Wilson Wiztel está enfrentando um processo de impeachment, mas por nada relacionado ao inexistente sanduíche em Harvard — mas concluiria o doutorado ainda no ano passado enquanto o doutorando governava o Rio de Janeiro.

Carlos Alberto Decotelli, no entanto, pediu demissão cinco dias após assumir o MEC. No sexto dia, desmentiu a FGV exibindo seis premiações em que a fundação o homenageava pelos trabalhos prestados lá como professor.

No sétimo dia, Decotelli reclamou que “há muitos brancos com imperfeições em currículo trabalhando sem incomodar ninguém“. E é difícil olhar para as fotografias aqui publicadas sem dar razão ao ex-ministro.

Doze anos

De algum forma, o fio aqui puxado dialoga com o caso dos cartões corporativos, um escândalo que há doze anos ocupou o noticiário e reverbera até hoje. No governo Lula, duas CPIs tentaram em vão resolver o problema, mas todos os ministros findariam inocentados.

Vinte dias

Ainda assim, foram necessários apenas 20 dias de escândalo para que Matilde Ribeiro pedisse demissão. Ironicamente, ela era ministra-chefe de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Os detalhes da história, no entanto, essa coluna já trouxe na edição passada.

Fontes

Esse texto só pôde ser escrito graças ao trabalho de uma imprensa profissional que apurou as informações referenciadas mais acima, e que aqui embaixo é reverenciada: CNBC, CNN Brasil, Época, Estadão, Exame, Folha de S.Paulo, Jota, G1, Metrópoles, NY Times, O Antagonista, O Globo, O Tempo, Piauí, Poder 360, The Intercept Brasil, UOL e Veja.

Não existe país decente sem imprensa livre.

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