Com o tempo, meus ouvidos aprenderam a ignorar a presença do fornecedor de frutas. O volume da própria voz sempre chamava a atenção da lanchonete. Os erros no português entregavam as dificuldades no aprendizado. O suor na testa, a rotina pesada que enfrentava. E a sujeira no caixote, que ainda estava longe de vencer na vida.
Mas houve o setembro em que a evangélica que serve os salgados relatou estar gripada justamente por ter tomado a vacina contra a gripe. Foi quando a resposta do fruteiro furou o bloqueio auditivo: ‘Isso é a agenda 2030. Põe no Google: agenda 2030. Está tudo lá!‘
O mundo só seria assombrado pela covid-19 dali a um trimestre. Mas, segundo o ‘cara dos morangos’, tudo fazia parte de um plano do governo, que teria interesse em matar a metade mais pobre da população justamente com vacinas. ‘Já viu rico tomando uma? Eu nunca vi‘, garantia.
O maior problema da teoria conspiratória não reside nas óbvias mentiras que saltam da cena, mas na base real que serve de sustentação a toda a desinformação. A vacina da gripe de fato acama alguns vacinados. Ricos de fato têm a opção de se vacinar contra a gripe em ambientes privados. E a busca no Google por ‘agenda 2030‘ de fato retorna um plano ambicioso da ONU que abre falando em ‘erradicação da pobreza‘ em ‘todas as formas e em todos os lugares‘. O que entende um humilde fruteiro ao ler tais palavras? Que haverá um esforço internacional para que ele enriqueça? Ou que o governo brasileiro sofre pressão para eliminá-lo? A realidade em que vive certamente favorece a segunda hipótese.
‘Agenda 2030’ era um dos tópicos explorados pelo olavismo para arregimentar um exército fascista no país. Eu nunca duvidei da boa fé de quem prepara plano para erradicação da pobreza, proteção do meio ambiente e outros 15 tópicos tão ou mais importantes. Ao mesmo tempo, sempre me incomodei com o fato de o plano ser traçado por ricos funcionários no conforto de um escritório em Nova York sem qualquer canal direto justamente com os que pretendem proteger. Afinal, eu me sinto incapaz de dizer o que é melhor até mesmo ao fruteiro que fornece morangos ao ‘sucos & salgados’ da minha rua.
Desde a surpreendente vitória do Brexit em 2016, e a consequente vitória de Donald Trump no novembro seguinte, a imprensa se agarrou à expressão fake news como causa de fenômenos tão complexos quanto indigestos. Mas, se um avião de grande porte não cai por um único erro, não há motivos para acreditarmos que políticos que presidem centenas de milhões de pessoas são escolhidos por um único fator. No ano seguinte, Nate Silver precisou de uma longa série de artigos no FiveThirtyEight para desvendar os mistérios da vitória republicana. E a imensa maioria dos títulos se focou no noticiário real.
Enquanto escrevo estas palavras, evito as ruas da vizinhança, pois novamente serão tomadas por manifestações golpistas lideradas por Jair Bolsonaro. No embate com outros poderes, o presidente da República novamente lança dúvidas sobre o processo eleitoral. Mas vai além, e desautoriza a Suprema Corte com perdão judicial a um deputado federal que fez severas ameaças à casa. O que mina a esperança, contudo, não são o mundo de mentiras contadas pelo ser que preside o país desde 2019, mas todas as verdades que servem de base a tanto cinismo.
Há décadas, a Justiça Eleitoral ignora boas práticas internacionais e alertas da inadequação do modelo de votação eletrônico adotado no Brasil. Houve tempo suficiente para uma atualização, mas vontade política só existiu para preservar uma lógica que apenas funciona porque o eleitorado acredita no funcionamento. Sem a fé da opinião pública, o sistema entra em colapso, pois não há registro do voto, mas somente de uma apuração prévia feita pela própria urna. Basta Bolsonaro reprisar Trump exigindo recontagem, e a democracia terá imensas dificuldades pra apresentar os mais de cem milhões de votos depositados.
Há tempos, o STF é fonte de problemas para o país. Daniel Silveira só foi perdoado porque o STF decidiu que Michel Temer poderia perdoar aliados. O Brasil só está refém de Arthur Lira porque o STF, em uma das últimas tentativas de salvar Dilma Rousseff, decidiu que o pedido de impeachment deveria ficar refém de Eduardo Cunha. Jair Bolsonaro só disputou a Presidência da República porque membros da casa decidiram que o deputado federal não cometeu racismo ao mentir sobre quilombolas de São Paulo. Jair Bolsonaro só conseguiu alugar um partido nanico para disputar a eleição de 2018 porque, na década anterior, para proteger linhas auxiliares do governo Lula, o STF decidiu acabar com a cláusula de barreira.
Trata-se de uma casa composta de onze nomes indicados pelo presidente da República, e posteriormente referendados por 81 senadores. São 82 políticos envolvidos no processo. Não há como a receita render outra coisa além de um tribunal político que tantas vezes abre mão da Justiça para proteger grupos de pressão que lhe servem de sustentação e sustento — no embate mais barulhento já registrado na casa, um integrante descreveu o outro como uma ‘mistura de mal com atraso e pitadas de psicopatia‘. Em resposta, ouviu a insinuação de que fazia fortuna com um ‘escritório de advocacia‘. Um presidiu o Tribunal Superior Eleitoral até fevereiro. O outro é o atual decano do Supremo Tribunal Federal. Uma acusação tão grave feita ao vivo diante das câmeras jamais foi investigada, explicada ou até mesmo cobrada por forças relevantes.
A despeito de todas as mentiras que conta, e são muitas, criminosas, repugnantes e inaceitáveis, Jair Bolsonaro não mente ao retratar o Congresso Nacional como corrupto. Não mente ao apontar os antigos pares como parlamentares que, em número tão incômodo quanto desconhecido, recolhem ‘rachadinhas’ de seus gabinetes. Não mente ao reclamar que a imprensa lhe cerca com uma sede muito maior do que a reservada às gestões petistas — época em que jornalistas se permitiam até mesmo ‘selfie‘ com a presidente da República, e só passaram a noticiar com profundidade a corrosão de tantas estatais com anos de atraso e bilhões canalizados a paraísos fiscais, algo que só foi revertido quando o Ministério Público passou a convocar coletivas para lá de barulhentas.
Jair Bolsonaro não é bom exemplo para nada de bom, mas não mente quando descreve os principais opositores como corruptos e antidemocráticos. Nem mente quando descreve a oposição como uma força política que alimenta preconceitos contra evangélicos, que vê policiais, médicos, empresários, investidores, a indústria, o agronegócio, a religião, o comércio, a população do interior ou mesmo a de algumas regiões do país como adversários.
Pedir um voto contra Bolsonaro é chutar com bico do pé um discurso frágil, mas de alicerce firme. É enfrentar toda uma sujeira tóxica varrida para baixo do tapete na esperança de que seja esquecida. É encarar com escudos de vidro milícias armadas. Uma missão que se torna ainda mais difícil quando liderada justamente pelo indivíduo que chegou ao poder prometendo unir o país contra a corrupção, mas, para lá se manter, cercou-se dos corruptos mais caros e alimentou todo tipo de divisão social. Uma missão que poderia ser muito mais fácil caso não implicasse no endosso à estratégia psicopata de deixar o país ser destruído para que, num segundo turno contra o monstro, e somente contra o monstro, possam ter condições de voltar a governar ruínas.
É fácil explicar ao fornecedor de frutas que a vacina contra a gripe provoca uma versão leve da doença, algo que incomoda, mas é um mal menor diante da doença em si. Por tudo o que aconteceu nos últimos anos, é difícil convencê-lo de que a morte dos mais pobres não é vantajosa aos mais poderosos. Pois nem eu estou convencido disso. É nítido que estamos sob a pior liderança possível. Mas nada disso seria possível sem muita conivência de todos os envolvidos — e é igualmente nítida a vantagem vista pela oposição na tragédia ainda em curso.
Assim como a vacina contra a gripe, a eleição deste ano se apresenta como uma opção pelo mal menor. Tudo indica que, a exemplo das disputas anteriores, o brasileiro será mais uma vez convidado a conter danos, o que está longe de parecer uma solução para os problemas reais. O discurso bolsonarista caminha para ser sufocado no que tem de mais frágil. A base de sustentação, no entanto, tem tudo para ganhar força nos próximos anos. Isso, claro, se o golpe que Bolsonaro articula fracassar — algo que ninguém consegue descartar, por mais que alguns tentem. Ou que pode nem ser necessário, com a oposição, equilibrada sobre salto dos mais altos, enfileirando erros, dos mais estúpidos aos mais boçais.
