Há um mês, Jair Bolsonaro aproveitou o “quebra-queixo” na saída da residência oficial para prometer que só voltaria a falar com os repórteres quando, na ótica turva dele, passassem a “falar a verdade“. Foi a senha para que os bolsolavistas que diariamente bajulam o presidente da República levassem os ataques contra a imprensa ao limite da agressão física.
Era a gota d’água. No mesmo dia, exceto por poucas redações governistas, os principais veículos nacionais suspenderam a cobertura da portaria do Palácio do Alvorada. Na réplica, o presidente da República queixou-se que os jornalistas estariam “se vitimizando“.
A próxima vítima
A grande vítima, contudo, foi o próprio Bolsonaro. Ao menos é que se conclui do monitoramento do interesse pelo presidente feito pelo Google Trends. Nos 27 dias que se seguiram à suspensão da cobertura do “cercadinho”, as buscas por “Jair Bolsonaro” caíram 29% em relação aos 27 dias que antecederam aqueles ataques à imprensa.

Fenômeno eleitoral
O Google Trends, inclusive, é uma ótima ferramenta para se compreender o “fenômeno Bolsonaro”, ou a relação dele com a mídia. Com registros desde 2004, o serviço até enxerga na década anterior alguns levantes pontuais, quase sempre por obra do CQC, do ainda deputado pelo Partido Progressista. Mas algo acontece em fevereiro de 2014 que faz com que o interesse em Bolsonaro inicie uma jornada que o levaria, quatro anos depois, ao Palácio do Planalto.

Na crista da onda
Ajustando o gráfico ao período observado, percebe-se que a onda pró-Bolsonaro encontra um pico no dia 14, mas segue reverberando até o mês acabar.

Vale a pena ver de novo
Vale, portanto, revisitar o arquivo daquele fevereiro.
1º de fevereiro de 2014, sábado
Jair Bolsonaro vira notícia ao comentar que um beijo gay exibido no último capítulo de “Amor à Vida” seria um “estímulo ao homossexualismo“.
3 de fevereiro de 2014, segunda-feira
O deputado federal é convidado a opinar no Super Pop sobre “morte de gays no Brasil“. Dentre vários absurdos, diz concordar que “o filho do Bolsonaro pode ser assassino ou político corrupto, mas não pode ser gay“.
4 de fevereiro de 2014, terça-feira
O parlamentar anuncia o interesse em suceder Marco Feliciano como presidente da Comissão de Direitos Humanos. Afirmando que “direitos humanos é para seres humanos, e não para marginais“, prometia “dar continuidade ao trabalho do pastor“.
6 de fevereiro de 2014, quinta-feira
A militância reagiu, pressionou o partido, e o PT demonstrou algum interesse em recuperar o comando da Comissão de Direitos Humanos, o que fez a bancada evangélica refugar da disputa, ainda que Bolsonaro seguisse na briga.
7 de fevereiro de 2014, sexta-feira
Numa tentativa de mostrar a incoerência de alguém como Bolsonaro presidir a Comissão de Direitos Humanos, a imprensa passa a resgatar falas polêmicas do deputado.
8 de fevereiro de 2014, sábado
Alinhado com uma onda que tomava as redes sociais, o criador da Dilma Bolada ameaça abandonar o apoio à reeleição de Dilma Rousseff caso o PT deixasse a Comissão de Direitos Humanos ser presidida por Bolsonaro.
10 de fevereiro de 2014, segunda-feira
Em entrevista, Bolsonaro vomita outro balde de absurdos, e garante que “não são esses ativistas gays e de movimentos negros que vão me atrapalhar“.
11 de fevereiro de 2014, terça-feira
Enquanto militantes protagonizam alguns protestos contra Bolsonaro, o deputado celebra em nova entrevista insana que, juntamente com Feliciano, já teria entrado para a história.
12 de fevereiro de 2014, quarta-feira
O próprio Bolsonaro compartilha no YouTube uma coletiva em que, cercado de microfones, lança uma de suas falas mais polêmicas: “A única coisa boa do Maranhão é o presídio de pedrinhas. É só você não estuprar, não sequestrar, não praticar latrocínio que tu não vai pra lá, porra!“
13 de fevereiro de 2014, quinta-feira
Bolsonaro seguia como único interessado na presidência da Comissão de Direitos Humanos quando Maria do Rosário, então secretária de Direitos Humanos, foi sondada para retomar o mandato e enfrentar o deputado.
14 de fevereiro de 2014, sexta-feira
As buscas no Google por Bolsonaro atingem o ápice do período no que o deputado surge em mais uma entrevista dizendo que a maioria dos gays seria “fruto do consumo de drogas“.
18 de fevereiro de 2014, terça-feira
Quatro dias depois, finalmente nasce o acordo para que o PT fique com a Comissão de Direitos Humanos.
26 de fevereiro de 2014, quarta-feira
Com uma candidatura avulsa, Bolsonaro ainda recebe oito votos, apenas dois a menos que Assis do Couto, petista que presidiria a Comissão de Direitos Humanos.
Isca
A internet se habituou a chama de “bait” a provocação para que alguém se meta em uma discussão apenas para demonstrar as próprias falhas. Na entrevista em que provoca “ativistas gays e de movimentos negros“, Bolsonaro deixa explícito que, com o apoio do líder do PP, buscava a presidência da Comissão de Direitos Humanos apenas para ter mais visibilidade em um ano eleitoral. Desde o 11 de fevereiro, a própria imprensa alertava que “o PP usa a Comissão de Direitos Humanos, e a indicação de Bolsonaro para presidi-la, como forma de pressão para conseguir a Comissão de Minas e Energia“. Na polêmica coletiva em que cita o presídio de Pedrinhas, Bolsonaro parabeniza quem produziu um cartaz com críticas porque estaria, sem perceber, promovendo o deputado. E conclui aquela página infeliz da nossa história sugerindo: “Quem não tá contente trabalhe contra a minha chegada na Comissão“.
Era um “bait”
O PP, que usou Bolsonaro para forçar o PT a abrir mão da Comissão de Minas e Energia, concordou em ficar com as de Trabalho e Turismo. A de Minas e Energia, contudo, ficou com o PSD. Derrotado por apenas dois votos, Bolsonaro partiu para o carnaval 2014 afirmando ter tido uma “derrota com gosto de vitória”. E, diferente do que acontecia até então, não mais perderia relevância nas buscas. Até que, sete meses depois, sairia das urnas com uma votação quatro vezes maior que a de 2010, e se tornaria o deputado federal mais votado do Rio de Janeiro.

Passo seguinte
De imediato, Bolsonaro se convenceu de que aquela estratégia poderia fazer dele presidente do Brasil. E fez. Desde então, a imprensa —não só a brasileira, mas a de todo o Ocidente— vem precisando se reinventar, ou populistas seguiriam enfileirando vitórias oriundas de dribles em um modelo de jornalismo pensado para um mundo ainda livre da malícia da internet.
Nova era
Por isso, a suspensão da cobertura do “cercadinho do Alvorada” soa tão importante. Três dias antes, o mundo conhecera o conteúdo em vídeo de uma reunião ministerial em que o presidente brasileiro atacava grosseiramente a independência da Polícia Federal. Ao atiçar os membros da seita contra a imprensa, Bolsonaro mais uma vez jogava um “bait” para que os editores alterassem as manchetes das capas. Sem o embate diário na portaria do Alvorada, ao menos essa arma ele perdeu. Coincidentemente ou não, passou recentemente a não ter controle das crises que ele próprio fomenta. Mas essa coluna já tratou disso ontem.
Fontes
Esse texto só pôde ser escrito graças ao trabalho de uma imprensa profissional que apurou as informações referenciadas mais acima, e que aqui embaixo é reverenciada: A Tarde, Congresso em Foco, Correio Braziliense, Correio 24 Horas, DW, El Páis, Estadão, Estado de Minas, Folha de S.Paulo, G1, HuffPost Brasil, O Antagonista, O Globo, Poder 360, R7 e UOL.
Não existe país decente sem imprensa livre.
