10.12.2018, Brasília/DF - Sergio Moro antes da cerimônia de diplomação de Jair Bolsonaro como presidente da República. Foto: Roberto Jayme/TSE
Grande História

Como o lavajatismo interferiu nas eleições de 2014 e 2018

A incoerência de Moro, a perseguição a adversários de Bolsonaro, o vazamento para Flávio, a mão do presidente, e muito mais.

10.12.2018, Brasília/DF - Sergio Moro antes da cerimônia de diplomação de Jair Bolsonaro como presidente da República. Foto: Roberto Jayme/TSE

Em 2004, o número 26 da revista do Centro de Estudos Judiciários trouxe, na página 56, um breve artigo assinado por Sergio Fernando Moro, um juiz federal de Curitiba que completaria 32 anos naquele quarto bimestre. Intitulado “Considerações sobre a operação Mani Pulite“, o texto defendia as delações premiadas, as prisões pré-julgamento, e o ativismo de uma jovem geração de juízes italianos que “atacava” desde os anos oitenta.

Ainda no embalo, o autor critica a prerrogativa de foro e o caráter político das instâncias superiores brasileiras, além da falta de rigor desta Justiça até então. A narrativa, contudo, buscava a todo tempo amenizar os efeitos indesejados do que é chamado logo no início de “momento extraordinário na história contemporânea do Judiciário“.

O suicídio de uma dezena de suspeitos, por exemplo, não mereceu mais do que quatro palavras de preocupação num curto quinto parágrafo. E o vácuo político que entronizaria Silvio Berlusconi, um magnata populista resgatado do gigantesco grupo de investigados, não parece reconhecer como padrinho o colapso dos partidos Socialista e Democracia Cristã citado páginas antes.

A tese central é a de que só com a opinião pública a favor é possível punir figuras tão poderosas, o que faz sentido. E, por três oportunidades, Moro garante não haver “óbice moral” nos métodos explorados para esse fim. Mas o próprio articulista enaltece a forma como vazamentos, por vezes falsos, manipulavam a imprensa, a opinião pública e o sentimento dos suspeitos, encurralando estes entre o temor de confissões que não necessariamente ocorreram, e o ódio crescente da população.

Moro até reconhece “o risco de lesão indevida à honra do investigado ou acusado“. Mas, contra a possibilidade de tamanha injustiça, receita apenas o “cuidado na desvelação de fatos relativos à investigação“. Mais adiante, percebe também o perigo de a “divulgação prematura de informações” não se confirmar, resultando em prejuízo à “credibilidade do órgão judicial“.

Mesmo assim, fórmula tão discutível é descrita como a “única explicação possível para a magnitude dos resultados obtidos pela operação mani pulite, (…) uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa“.

E o que poderia ser feito caso os investigadores não encontrassem a “carga de prova exigida para alcançar a condenação” de sobrenomes tão prestigiados? Segundo Moro, a alternativa seria a opinião pública “constituir um salutar substitutivo, tendo condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos corruptos, condenando-os ao ostracismo“.

Em outras palavras, o fim político que a Lava Jato tanto negaria possuir restava explícito dez anos antes de a operação vir a campo, ao menos no artigo que o futuro juiz do caso publicou sobre a similar italiana, principal inspiração da brasileira.

2014

Quando, em 23 de outubro de 2014, a três dias do segundo turno da eleição presidencial, a revista Veja estampou em capa que a presidente e o antecessor sabiam do esquema que depenava a Petrobras, a fórmula parecia em plena aplicação. Toda a reportagem se baseava em um pequeno trecho do depoimento de Alberto Youssef, um dos principais delatores da Lava Jato. Nele, o doleiro entregava que o Palácio do Planalto “sabia de tudo”, e até dava nome aos bois: Lula e Dilma Rousseff.

Mas o texto ia pouco além disso. O delator não apresentava provas do que relatava, nem a reportagem detalhava como tivera acesso a informação tão valiosa. Talvez por isso não foi suficiente para impedir a reeleição de Dilma, ainda que servisse a um gigantesco salto numa crise política que resultaria no impeachment da petista 22 meses depois.

A Lava Jato realizaria ao menos 78 fases, desdobraria-se em outras 60 operações distintas, e inspiraria forças-tarefas menores que, em todo o país ou mesmo na América Latina, usariam as mídias locais contra lideranças regionais. Na cultura pop, o trabalho da operação inspiraria um seriado com duas temporadas na Netflix, e um filme que garantia no título: “a lei é para todos“.

O receio, no entanto, era de que o lavajatismo usasse a lei exclusivamente contra inimigos. E a eleição geral seguinte deixaria a controvérsia mais evidente.

2018

Em 4 de setembro de 2018, o Ministério Público de São Paulo denunciou Fernando Haddad, que ainda disputava a Presidência como vice de Lula, por corrupção e lavagem de dinheiro. Uma semana depois, Beto Richa foi preso. O ex-governador do Paraná vinha garantindo uma vaga no Senado. Mas um estranho alinhamento entre investigações da Lava Jato e do Ministério Público do Paraná aniquilaria as chances do tucano. No dia seguinte, o Ministério Público de Minas Gerais reabriu a investigação sobre um aeroporto construído por Aécio Neves. O fato novo para a retomada dos trabalhos em plena campanha veio de um grampo capturado 17 meses antes. Faltando 13 dias para o primeiro turno, o MP-SP abriu uma investigação contra Geraldo Alckmin a respeito de irregularidades cometidas quatro anos antes, quando o tucano concluía o terceiro de quatro mandatos como governador de São Paulo.

A sede de Justiça, contudo, era um tanto seletiva.

Quase um ano antes daquela disputa, o Rio de Janeiro conheceu a Cadeia Velha, um 39º desdobramento da Lava Jato. Coordenado pelo delegado Alexandre Ramagem, o trabalho da PF colheria provas que resultariam em uma terceira operação.

Ramagem, no entanto, encerrou a participação na força-tarefa um mês antes de um relatório do Coaf flagrar movimentações atípicas nas contas de Fabrício Queiroz, um assessor de Flávio Bolsonaro que atuava como homem de confiança de Jair.

De acordo com o agregador de pesquisas do Poder 360, o discurso anticorrupção de Bolsonaro já contava com algo entre 15% e 20% das intenções de voto na corrida presidencial. No futuro, já como oposição ao presidente que ajudara a eleger, Gustavo Bebianno confirmaria o que as datas dos documentos insinuavam: a operação que atingiria Queiroz fora “brecada” para não prejudicar Bolsonaro.

Bebianno morreria antes de cumprir a promessa de externar mais detalhes, que só vieram por Paulo Marinho. Segundo o suplente de Flávio, um delegado da PF vazou para a família que o principal assessor do clã seria pego por uma investigação. E que, na condição de bolsonarista, batalhava internamente para que a operação fosse adiada para após a eleição.

Assim que souberam do vazamento, Bolsonaro e o primogênito exoneraram não só o “faz tudo”, mas também Nathália, filha de Queiroz que assinava como assessora do gabinete do presidenciável que havia recebido 49 milhões de votos no primeiro turno. As exonerações foram publicadas em 15 de outubro. Duas semanas depois, com a vitória de Bolsonaro confirmada, Ramagem se tornou o coordenador da segurança do presidente eleito.

PF e MPF só tiraram o “breque” da Furna da Onça em novembro, com os alvos não conseguindo disfarçar que a operação havia vazado. Naquele mês, Bolsonaro já confirmava a convocação de alguns ministros que tomariam posse em janeiro. E Lula, que teve a candidatura barrada pela lei da Ficha Limpa, finalmente prestava um depoimento adiado por Moro três meses antes, em 15 de agosto de 2018. O juiz federal alegou que, assim, evitava “a exploração eleitoral dos interrogatórios”.

Faltando cinco dias para a votação do primeiro turno, contudo, o mesmo Moro derrubaria o sigilo da delação premiada de Antonio Palocci, uma colaboração excepcionalmente acordada diretamente com a Polícia Federal.

Quatro dias antes, uma simulação de segundo turno no Datafolha mostrava Haddad 6 pontos percentuais à frente do candidato do PSL. Ao fim do dia em que detalhes da delação de Palocci rodaram manchetes e redes sociais, Bolsonaro já ressurgia em pesquisa do mesmo instituto dois pontos percentuais à frente do candidato do PT.

Por óbvio, a caneta de Moro não deve ter sido o único fator a pesar na opção do eleitor. Dois dias antes, Edir Macedo se decidiu pelo apoio ao candidato que venceria, o que certamente virou votos evangélicos. E é razoável concluir que a magnitude da manifestação #EleNão mostrou aos antipetistas que um voto nulo poderia resultar numa quinta vitória seguida do petismo.

É fato, contudo, que Moro adiara o depoimento de Lula para “evitar a exploração eleitoral dos interrogatórios“, mas não se incomodou com o risco de a delação de um ex-ministro dos governos Lula e Dilma ser explorada eleitoralmente na reta final.

Na data em que Bolsonaro confirmou a vitória, Rosângela Moro celebrou o feito no Instagram. No dia seguinte, Bolsonaro adiantou que convidaria Moro para ser ministro da Justiça. Três dias depois, Hamilton Mourão deixou escapar que, na verdade, o convite fora feito por Paulo Guedes antes mesmo de a eleição se concluir. 

Bebianno também confirmaria que, na votação do segundo turno, ouviu do economista que o juiz federal já tinha sido sondado para o cargo em “5 ou 6 conversas” com o próprio Guedes. E que Moro “estaria disposto a abandonar a magistratura e aceitar esse desafio“.

Não há registro de quando ocorreram as “5 ou 6 conversas“. Mas se sabe que Guedes, cinco dias antes da realização do primeiro turno, simplesmente sumiu. Oficialmente, cumpria agenda num banco do qual era sócio. Coincidentemente, a data em que a imprensa se toca do sumiço do “Posto Ipiranga” é a mesma em que Moro libera a delação em que Palocci garantia, por exemplo, que Lula sabia do esquema de corrupção na Petrobras.

Menos de sete meses após prender o principal adversário de Bolsonaro, e após “5 ou 6 conversas” com Guedes, Moro tornou público o que estava disposto a fazer mesmo antes de o segundo turno terminar. E, dando de ombros ao que prometera em ao menos sete entrevistas, trocou a magistratura pela política.

Governo Bolsonaro

Em 2018, conforme assumiria um dos integrantes que a chefiava, a Lava Jato, via Jair Bolsonaro como um mal menor daquela disputa. Impactadas pelo lavajatismo, as urnas elegeram figuras como a procuradora Bia Kicis, os juízes federais Wilson Witzel e Selma Arruda, além de toda uma bancada de youtubers que faziam público defendendo o combate à corrupção.

O depoimento de Lula findou colhido por Gabriela Hardt, uma vez que, naquele novembro, Moro já havia aceitado o convite para se tornar ministro da Justiça do principal beneficiado pela liberação da delação negociada entre a PF e Palocci.

O caso Queiroz só chegou à imprensa em dezembro de 2018, cinco semanas após 57,8 milhões de brasileiros depositarem um voto de confiança em Bolsonaro. Como presidente e senador eleitos, Jair e Flávio tiveram participação ativa na estratégia da defesa do ex-assessor, partindo do pai a ordem para que o investigado faltasse ao depoimento que daria em dezembro de 2018 ao MP-RJ.

Em junho de 2019, o conteúdo hackeado de celulares de membros da força-tarefa confirmou que Sergio Moro mantinha com a Lava Jato uma relação que não cabia ao juiz do caso. Cinco meses depois, um grande acordo nacional, com Supremo, com Bolsonaro e com tudo, reduziu no STF a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, libertando Lula e boa parte do elenco preso pelo lavajatismo.

Em abril de 2020, por abuso de poder econômico e caixa dois, o Senado confirmou a cassação do mandato da senadora Selma Arruda. Foi também nesse mês que Sergio Moro se demitiu acusando Bolsonaro de interferir politicamente no comando da Polícia Federal. O presidente chegou a colocar Ramagem, aquele da operação cadeia Velha, no comando da corporação. Após um recuo presidencial, o delegado que fez a segurança do presidente voltou ao comando da Abin — e, ao que tudo indica, de mais uma Abin paralela.

Em maio de 2020, Gilmar Mendes acusou o ex-ministro da Justiça de ter vazado a delação de Palocci para prejudicar Haddad. Dois meses depois, Dias Toffoli defendeu que o Congresso Nacional aprovasse uma lei estipulando que juízes e membros do Ministério Público cumpram com uma quarentena de 8 anos antes de disputarem cargos públicos. Como explicou, o objetivo era evitar a “utilização da magistratura e do poder imparcial do juiz para fazer demagogia, aparecer para a opinião pública, e depois se fazer candidato”. De imediato, o presidente do Supremo Tribunal Federal recebeu o aceno positivo de Rodrigo Maia, então presidente da Câmara.

A iniciativa foi vista como uma forma de evitar que Sergio Moro dispute as eleições presidenciais de 2022. O autor do projeto e o próprio presidente da Câmara negaram que a lei retroagiria de forma a prejudicar o ex-juiz federal. O procurador Júlio Marcelo de Oliveira, no entanto, lembrou que, a exemplo da Lei da Ficha Limpa, “regras de inelegibilidade se aplicam no momento do registro das candidaturas a todos os que nelas se enquadrem”.

A discussão não era inédita. Em 2018, em reação ao caso do procurador Marcelo Miller, que advogou para Joesley Batista antes mesmo de deixar a PGR, o Senado aprovou uma quarentena de 3 anos antes que juízes e promotores atuem na advocacia privada.

Em outubro de 2020, sob a alegação sem sentido de que inexiste corrupção no próprio governo, Jair Bolsonaro cinicamente assumiu ter acabado com a Lava Jato.

Lições

Dos quatro casos mencionados no início desse levantamento, só Aécio Neves conseguiu se eleger. Mesmo assim, com uma votação bem menor do que a obtida duas décadas antes. Quanto ao resto, foi condenado ao ostracismo, como previa Moro em 2004.

Naquele artigo, o ainda juiz federal concluiu que a lição mais importante de toda a Mani Pulite talvez fosse “a de que a ação judicial contra a corrupção só se mostra eficaz com o apoio da democracia. É esta quem define os limites e as possibilidades da ação judicial“. Se de fato tivesse aprendido alguma lição, não teria apoiado um candidato que se orgulhava dos ditadores que sequestraram o Brasil por 21 anos. Um que, a uma semana de vencer, prometia perseguir e prender os próprios adversários.

Em novembro de 2020, já como adversário de Bolsonaro, mas sem magistratura ou ministério, Moro tornou-se diretor na Alvarez & Marsal, consultoria que atua na recuperação judicial da Odebrecht, empreiteira mais atingida pela Lava Jato. O ex-juiz federal, que passou anos negando qualquer interesse em entrar para a política, promete não atuar em casos com potenciais conflitos de interesse.

Fontes

Esse texto só pôde ser escrito graças ao trabalho de uma imprensa profissional que apurou as informações referenciadas mais acima, e que aqui embaixo é reverenciada: BBC, CNN Brasil, Consultor Jurídico, Correio Braziliense, El País Brasil, Época, Estadão, Exame, Folha de S.Paulo, G1, InfoMoney, O Antagonista, O Globo, O Tempo, Piauí, Poder 360, The Intercept Brasil, UOL, Valor Econômico e Veja.

Não existe país decente sem imprensa livre.

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