Grande História

Qual vontade? Qual momento?

7.7.2020 - Brasília/DF - Jair Bolsonaro e comitiva participam de almoço com Todd Chapman. Foto: divulgação.

A celebração da independência americana, a lista de convidados, o dia que durou 21 anos, a covid-19 presidencial, e muito mais.

No último 4 de julho, a independência dos Estados Unidos chegou ao 244º aniversário. Por aqui, a data foi marcada por mais uma constrangedora sabujice de Jair Bolsonaro para com Donald Trump, a quem chamou de “grande estadista” em almoço na casa de Todd Chapman, embaixador americano no Brasil.

A lista de convidados, contudo, deveria ter chamado um tanto mais de atenção: além do presidente brasileiro e do embaixador americano, sorriram para fotos as pessoas de Lorenzo Harris, Luiz Eduardo Ramos, Fernando Azevedo e Silva, Walter Braga Netto, Flávio Viana Rocha, Ernesto Araújo e Eduardo Bolsonaro.

Escalação

Dando cargos aos bois, estavam lá o adido de Defesa dos EUA, três generais que respondem pela Secretaria de Governo, Defesa e Casa Civil brasileiras, um almirante que atua como secretário especial de Assuntos Estratégicos, um chanceler abilolado das ideias, e um deputado federal que, de tanto prometer que o pai emplacaria um autogolpe, virou alvo de uma apuração preliminar da PGR.

Íntegra, ou quase

Para entender a importância do registro, é preciso voltar à íntegra da reunião ministerial de 22 de abril, aquela usada por Sergio Moro como prova de que Bolsonaro tentava interferir na independência da Polícia Federal. Por determinação de Celso de Mello, foram cortados do vídeo onze trechos que citavam negativamente a China. Sete deles saíram da boca do próprio presidente em um momento mais delicado do encontro. Logo em seguida, contudo, é possível compreender o que é dito nas entrelinhas.

Entrelinhas

Quando começam os cortes, Bolsonaro relatava que “tava vendo, estudando em fim de semana aqui como é que o serviço chinês, secreto, trabalha nos Estados Unidos“. Ao término de um primeiro trecho picotado, o presidente diz que “em alguns ministérios tem gente deles plantado aqui dentro“. Após outras duas supressões, Bolsonaro finaliza o raciocínio em óbvia menção à China: “Precisamos deles pra vender? Sim. Eles precisam também de nós. Porque se não precisassem não estariam comprando a soja da gente não. Precisam. E é um negócio, pô.

“Alguma afinidade conosco”

Mas logo o discurso passa a fazer menção velada aos Estados Unidos.

“E devemos aliar com quem tem umas… alguma afinidade conosco. Pra gente poder faz… Fazer valer a nossa vontade naquele momento. Não adianta se esconder aqui, depois tem um problema, daí liga pro tio, ‘Ô, tio’. Vou falar: ‘Pô, cara, você me ignorou até hoje. Você só não me chamou de imperialista, igual a esquerdalha e o FHC falavam no passado, no resto… Agora não dá mais’. Então essa é a preocupação que temos que ter. A questão estratégica, que não estamos tendo.”

Jair Bolsonaro, em reunião ministerial de 22 de abril de 2020, citando a necessidade de uma aliança estratégica com os Estados Unidos.

Vale aqui o destaque ao trecho: “Pra gente fazer valer a nossa vontade naquele momento“.

Qual vontade? Qual momento?

Houve um momento em que, para fazer valer a própria vontade, as Forças Armadas brasileiras se aliaram estrategicamente ao Tio Sam. E isso está bem registrado em O Dia que Durou 21 Anos, documentário brasileiro lançado em 2012 por Camilo Galli Tavares. Os 77 minutos de filme narram a importância de Lincoln Gordon, então embaixador americano no Brasil, no suporte às movimentações políticas que resultariam no golpe militar de 1964.

Guerra Fria

Nos relatórios do embaixador, a prometida reforma agrária de João Goulart teria potencial para transformar o Brasil em uma nova Cuba; e a nacionalização de duas companhias americanas por Leonel Brizola, então governador gaúcho, era classificada de “inaceitável“. Em uma gravação, Gordon sugere a John F. Kennedy que Goulart seja afastado. Com a autorização do presidente americano, o embaixador busca financiar opositores que trabalhem narrativas necessárias para que a opinião pública apoie um golpe no Brasil. E o trabalho prossegue mesmo após Lyndon Johnson assumir a Casa Branca.

Gota d’água

No que Goulart protagoniza em 13 de março de 1964 um gigantesco ato pelo que chamava de “Reformas de Base”, os militares dizem temer que o Brasil se transforme numa ditadura comunista. Neste ponto, ganha importância o papel de Vernon Walters, adido militar responsável pela escolha de Castelo Branco como líder dos golpistas.

Uncle Sam, Brother Sam

No 31 de março seguinte, a pedido de Gordon, a “Operação Brother Samlevou das Antilhas ao litoral de Santos toneladas de armas leves e munições, petroleiros, aviões de caça, um navio com 50 helicópteros, um porta-aviões, seis destróieres, um encouraçado, um navio de transporte de tropas, e 25 aviões para transporte de material bélico. Tudo isso serviria de apoio para caso a ação em terra tocada pelos 6 mil homens de Mourão Filho, general do 4º Exército Brasileiro, enfrentassem dificuldades. Afinal, a própria CIA antevia que a “revolução” não teria um “desfecho rápido” e seria “sangrenta“.

Alguém? Alguém?

Mas, quando Mourão Filho chegou ao Rio de Janeiro na manhã de 1º de abril, não havia qualquer resistência. Pelo contrário, os mineiros ganharam o reforço do 1º Exército, e marcharam juntos até a recepção de Carlos Lacerda, governador da Guanabara que liberaria o estádio do Maracanã como base para os golpistas.

Desperdício

Na prática, a “Operação Brother Sam” só serviu para queimar combustível. No dia seguinte, ainda com Jango no país, os Estados Unidos atenderam as sugestões do embaixador Gordon. E, legitimando o golpe, reconheceram o novo governo brasileiro, então aos cuidados de Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara. Nove dias depois, com 361 dos 475 votos possíveis, Castelo Branco, o mesmo general escolhido por Walters como líder do movimento golpista, foi eleito o novo presidente da República pelo Congresso Nacional.

De 2012 a 2020

Esse é o tipo de coisa que a CIA e o governo americano fazem em países como o Brasil. Eles buscavam os oficiais militares dos quais gostavam, aqueles com quem podiam conversar. Faziam dossiês dos militares que eram pró EUA. E escolhiam assim os futuros conspiradores“. As aspas são de Peter Kornbluh, diretor da National Security Archive’s, ONG americana que desde 1985 mergulha fundo nos documentos secretos dos Estados Unidos. Elas aparecem no terço final de “O Dia que Durou 21 Anos”, o tal documentário lançado ainda em 2012.

Recapitulando

No último 4 de julho, o presidente brasileiro se reuniu com um embaixador e um adido de Defesa dos EUA, três generais, um almirante, um chanceler e um deputado federal que, há menos de dois meses, dizia: “quando chegar ao ponto em que o presidente não tiver mais saída e for necessária uma medida enérgica, ele é que será taxado como ditador“. As aspas golpistas do terceiro filho vieram ao mundo após Bolsonaro, em reunião ministerial, garantir que a aliança com os Estados Unidos seria estratégica “pra gente poder faz valer a nossa vontade naquele momento“.

Mais atenção

Qual vontade? Qual momento? Por enquanto, a imprensa só achou estranho a ausência de máscaras no encontro, o que ao menos serve de constrangimento a um presidente que agora assume estar com covid-19, forçando o próprio embaixador americano a fazer testes (que deram negativo). Mas até isso causa estranheza. Em Brasília, não faltava fonte que, em off, garantia que o presidente da República fora infectado pelo novo coronavírus ainda em março. Dado o risco de tudo não passar de uma armadilha do “gabinete do ódio”, a imprensa optou por aguardar um laudo médico, que só chegou com meses de atraso, e um punhado de furos.

Sem pergunta, sem resposta

Ontem, primeiro dia útil após a celebração do 244º aniversário da independência dos Estados Unidos, toda a agenda do presidente foi cancelada no que novos exames para covid-19 foram realizados por um hospital das Forças Armadas. Que Jair Bolsonaro deixe de lado qualquer convite de embaixada, e aproveite a agenda livre para cuidar da própria saúde. Ou, no máximo, elabore respostas para questões que nem chegaram a ser feitas a ele: Qual vontade? Qual momento?

Fontes

Esse texto só pôde ser escrito graças ao trabalho de uma imprensa profissional que apurou as informações referenciadas mais acima, e que aqui embaixo é reverenciada: Estadão, Estado de Minas, Folha de S.Paulo, G1, NY Times, O Antagonista, O Globo, UOL e Veja.

Não existe país decente sem imprensa livre.

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