O Código Penal brasileiro foi promulgado em 3 de outubro de 1941. Assinado por Getúlio Vargas, o texto permitia no artigo 393 a execução de pena mesmo para condenados em primeira instância.
Em 1973, contudo, a lei iria atingir Sérgio Paranhos Fleury, delegado que liderava a repressão do DOPS no período mais sangrento da ditadura militar, e que estava prestes a ser julgado por envolvimento com esquadrões da morte. Atendendo a uma determinação do regime militar, o Congresso Nacional aprova aquela que ficou conhecida como Lei Fleury. Pelo novo texto, réus primários com bons antecedentes poderiam aguardar o julgamento em liberdade.
Somente 36 anos depois, o Supremo Tribunal Federal proíbe a execução de pena antes de o processo transitar em julgado, o que permitiria a réus milionários recorrerem indefinidamente até que os crimes prescrevessem. O caso que mudaria o entendimento em vigor desde 1940 beneficia diretamente Omar Vítor, um fazendeiro que, naquele 2009, ainda não havia cumprido um único dia da pena de sete anos e meio por uma tentativa de homicídio cometida 18 anos antes.
Mas, em 17 de fevereiro de 2016, referendando um voto histórico de Teori Zavascki, o STF decidiu por 7 votos a 4 que bastava uma condenação em segunda instância para que investigados começassem a cumprir pena. Na ocasião, só Rosa Weber, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski discordaram do relator, que estava em alta por também relatar no Supremo o trabalho realizado pela operação Lava Jato.
Grampeando Jucá
“Objetivamente falando, com o negócio que o Supremo fez, vai todo mundo delatar“. A breve análise foi feita no mês seguinte por Sérgio Machado a Romero Jucá, então ministro do Planejamento do governo Dilma Rousseff. De forma irônica, o ex-presidente da Transpetro estava justamente grampeando o colega senador na esperança de colher provas que pudessem ser utilizadas em uma delação.
Na conversa, a dupla concorda que “com Dilma não dá“, que “tem que ter impeachment“, e que “a solução mais fácil era botar o Michel (…) num grande acordo nacional (…) com o Supremo, com tudo”.
Quando trechos do grampo vêm a público em maio de 2016, de imediato governistas exploram a citação a “um grande acordo nacional com o Supremo, com tudo” como prova de que Dilma estaria enfrentando um processo de impeachment por ser uma “presidenta honesta“. Mas a narrativa petista ignorava três fatos: que o tal acordo, como era explicitado por Machado, “protege o Lula, protege todo mundo“; que, por uma informação que vinha destacada na própria manchete da Folha de S.Paulo, não tinha por objetivo final afastar Dilma, mas “deter o avanço da Lava Jato”; e que a presidente precisava ser afastada não por ser honesta, mas por não ter capital político suficiente para manobras tão impopulares, vide o fracasso da tentativa de “proteger Lula” nomeando-o chefe da Casa Civil.
Operação Lava Jato
A Lava Jato era o exemplo mais bem sucedido de um modelo de combate à corrupção que só se tornou possível com a lei da delação premiada, sancionada por Dilma como afago às manifestações de junho de 2013, e a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, o que obrigava a elite com verba para recursos infindos a delatar comparsas como forma de reduzir o tempo de cadeia.
Uma vez na Presidência da República, Michel Temer mostraria força para aprovar algumas reformas. Mas também se descobriu incapaz de caminhar com uma agenda anti-Lava Jato, como o projeto contra abuso de autoridade, ou uma descabida anistia de caixa dois. Por seu turno, o Supremo confirmava novamente a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, ainda que com Dias Toffoli migrando ao time dos “votos vencidos”.
Nos anos seguintes, mesmo com a morte de Teori, e o trio Toffoli, Lewandowski e Gilmar Mendes dando uma canseira na segunda turma do STF, a Lava Jato enfileiraria vitórias, e atingira o auge ao prender Lula em abril de 2018. Em paralelo, um deputado federal oportunista, pegando carona na fama da operação, chegava ao cúmulo de bater continência para Sergio Moro em um aeroporto.
O pacto de Toffoli
Quando, em 13 de setembro de 2018, Toffoli assumiu a presidência do STF propondo um “pacto nacional entre os poderes da República“, Jair Bolsonaro já liderava a corrida presidencial com 26% das intenções de voto. Ignorado, o líder do Supremo voltou a insistir na ideia ao término do primeiro turno e na realização do segundo.
Toffoli não tinha muita margem para negociação. Mas, conforme revelaria Paulo Marinho, suplente de Flávio Bolsonaro, a Furna da Onça foi vazada para o clã Bolsonaro ainda no segundo turno da eleição, quando a operação teria, nas palavras de Gustavo Bebianno, sido “brecada“.
Após a eleição, em 19 de novembro de 2018, o presidente do STF faz uma quarta proposta de “pacto nacional entre os poderes“. Dois dias depois, o presidente eleito anuncia que havia escolhido André Mendonça para chefiar a Advocacia-geral da União.
Mendonça gozava de prestígio na AGU desde 2008, quando o próprio Toffoli atuava como advogado-geral do governo Lula. Se a proximidade da dupla rendia suspeitas, renderia certezas após Mendonça lançar um livro em homenagem aos 10 anos de Toffoli como membro do Supremo.
Quanto à Furna da Onça, só perde os freios em 8 de dezembro de 2018, quando vem a público o que se sabia sobre Fabrício Queiroz, assessor demitido por Flávio assim que, ainda de acordo com Marinho, Bolsonaro soube do vazamento da Furna da Onça.
Guerra entre poderes
Quando Bolsonaro assume a Presidência, o clima ainda está para lá de belicoso. Em fevereiro de 2019, surge a primeira notícia de que Carlos Bolsonaro tentava montar no Palácio do Planalto uma agência de espionagem clandestina.
Um mês depois, aos cuidados de Alexandre de Moraes, Toffoli abre um polêmico inquérito para apurar os ataques que o STF sofria na internet. Trata-se justamente de uma reação às tentativas do Planalto de criar uma espécie de, digamos, “ABIN paralela“.
Em 12 de maio de 2019, Bolsonaro adianta que Moro seria indicado ao STF. Três dias depois, em reação às diabruras de Abraham Weintraub como ministro da Educação, a oposição faz um gigantesco protesto em 222 cidades contra o governo Bolsonaro. Como resultado, o Google Trends mediria nos dias seguintes que o interesse do brasileiro pela palavra “impeachment” atingia um patamar inédito na gestão.
O bolsolavismo, que já envenenava as redes sociais, reage com ainda mais autoritarismo, convocando uma manifestação pelo fechamento do Congresso e do STF. Mas o Movimento Brasil Livre rasga o plano para o mundo a uma semana da manifestação. Naquele mesmo 19 de maio, Janaina Paschoal implora para que a população não compareça ao ato de 26 de maio.
É quando tudo muda.
21 de maio de 2019
É possível dividir o governo Bolsonaro em antes e depois de 21 de maio de 2019. Até então, havia uma “guerra” entre poderes, com Bolsonaro defendendo a Lava Jato de um lado, e uma aliança entre STF, centrão e oposição tentando conter a operação —e Bolsonaro— do outro.
No 21 de maio, conforme publicaria a Folha de S.Paulo, líderes do PT promovem uma videoconferência para ouvir a opinião de Lula. O ainda presidiário, por intermédio de um aliado cujo nome não é revelado, desautoriza qualquer “fora, Bolsonaro”. Para tanto, alega receio do que Hamilton Mourão seria capaz de fazer como presidente. E, de fato, em entrevista de agosto de 2019, o ex-presidente por duas vezes insistiria para que a oposição deixasse Bolsonaro concluir o mandato.
O Valor Econômico narra um episódio semelhante, mas envolvendo Dias Toffoli. Não crava que se dera em 21 de maio de 2019, mas diz ter ocorrido entre os dias 15 e 26. Segundo a reportagem, o presidente do STF se reúne com seis senadores do PT, desautoriza qualquer tipo de “fora, Bolsonaro”, e alega receio não de Mourão, mas dos militares como um todo.
A Veja também dá uma versão do episódio. Não fala em 21 de maio, mas apenas “abril e maio”. Não cita Lula, mas diz que empresários querem impeachment, congressistas querem parlamentarismo, e militares cogitam golpe. Toffoli, no entanto, pacifica o conflito.
A crise é também registrada no livro Tormenta. Nele, a jornalista Thais Oyama não especifica uma data, tratando tudo como “maio”. Mas abre aspas a uma mensagem que Toffoli envia por WhatsApp a um amigo já no dia 23: “Eu salvei a República“.
No mês anterior, o polêmico inquérito do STF foi usado para censurar a revista Crusoé, que destacava em capa a proximidade entre Lula e Toffoli. Passados três dias, Moraes volta atrás na censura. Coincidentemente, uma hora depois, Toffoli libera o petista para conceder entrevistas diretamente da prisão.
Ainda de acordo com a revista Crusoé, no mesmo 21 de maio em que Lula, por intermédio de um aliado, desautoriza o PT a tocar qualquer tipo de “fora, Bolsonaro”, e que Toffoli em pessoa desautoriza o PT a batalhar pelo impeachment de Bolsonaro, Toffoli e Bolsonaro têm uma primeira conversa para selarem um pacto que também contaria com o apoio de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre.
“Paz” entre poderes
Ainda no 21 de maio, Paulo Guedes e Onyx Lorenzoni entram em campo para mudar a pauta do ato golpista de 26 de maio de 2019. Sai “fechamento de Congresso e STF“, entra “defesa das reformas“. Quando a manifestação ocorre, os atos são grandes, mas menores do que os da oposição. Dois dias depois, encontram-se Toffoli, Bolsonaro, Maia e Alcolumbre para selarem o pacto que o primeiro pregava desde que assumiu o comando do Supremo. No final daquele mês, Bolsonaro já surge às gargalhadas ao lado de Toffoli.
No 10 de julho de 2019, o presidente da República ignora que prometia um gabinete do STF a Moro, e passa a falar em alguém “terrivelmente evangélico“. Era uma referência a André Mendonça, o AGU que defendia o inquérito aberto por Toffoli no STF. Em agosto de 2019, Bolsonaro chega a negar que tivesse prometido o STF a Moro, e diz que Mendonça seria muito mais “supremável”.
No 12 de julho de 2019, surge uma novidade. Bolsonaro quer entregar a principal embaixada brasileira a Eduardo Bolsonaro. A ideia estapafúrdia seria abortada. Mas não antes de ser beneficiada por Alcolumbre, Maia e Lewandowski, ministro do Supremo que, com Toffoli e Gilmar Mendes, vivia a derrotar a Lava Jato na segunda turma.
No 16 de julho de 2019, vem o gesto mais simbólico: Toffoli aproveita o plantão das férias para suspender o inquérito que atingia Queiroz. Nesse mesmo dia, o próprio Frederick Wassef, advogado do presidente da República, deixa escapar que Flávio e Jair choraram com a notícia da suspensão. Segundo uma fonte da Crusoé, foi uma “catarse” na família Bolsonaro.
No início de setembro de 2019, por solicitação de Alcolumbre, um parecer do Senado dá aval à esdrúxula indicação de Eduardo Bolsonaro à embaixada nos Estados Unidos. Fernando de Souza Cunha, que assinava o documento, era sócio de Augusto Aras. No quinto dia daquele mês, ignorando as opções da lista tríplice, Bolsonaro escolhe Augusto Aras para comandar a Procuradoria-geral da República.
A escolha é vista no próprio STF como uma derrota da Lava Jato. De fato, o coordenador da operação não esconde a insatisfação. Na outra ponta, a presidente do PT deixa escapar que curtiu a decisão de Bolsonaro. Uma semana após Aras ser agraciado, Toffoli indica que pautaria mais uma revisão na possibilidade de prisão após condenação em segunda instância.
Enterrando a Lava Jato
Enquanto a discussão é preparada, um porção de movimentos enfraquecem a Lava Jato, favorecendo a libertação de Lula. Bolsonaro, por exemplo, dá aval à derrubada dos próprios vetos à Lei de Abuso de Autoridade, e se nega a questioná-la no STF.
Quando a prisão após condenação em segunda instância volta à pauta do Supremo, Bolsonaro adianta que não iria se contrapor a qualquer decisão, nem mesmo se o Congresso quisesse revertê-la por uma nova lei. Em dado momento, Carlos Bolsonaro publica uma defesa da ideia, mas o pai de Carluxo manda apagá-la das próprias redes, restando apenas o backup.
Já durante a votação, Aras ignora uma questão de ordem levantada ainda por Raquel Dodge. Luiz Fux até tenta retomá-la, mas é contido por Gilmar, Marco Aurélio e Lewandowski. Até que, por 6 votos a 5, o maior legado de Teori é jogado no lixo, e a possibilidade de prisão após condenação segunda instância cai, devolvendo o Brasil à realidade em que milionários pagam caros advogados com parte das fortunas que desviam recorrendo, assim, indefinidamente a instâncias superiores até que os crimes prescrevam.
Lula Livre
Com a porteira aberta, Lula e condenados de vários partidos são soltos. Em paralelo, Bolsonaro orienta ministros e assessores a manterem silêncio sobre a manobra que libertou o petista. Eduardo Bolsonaro, por exemplo, nem disfarça o interesse em ver o adversário solto.
Sem suportar a pressão de Jair Bolsonaro para interferir nas investigações da Polícia Federal, Sergio Moro pede demissão em 24 de abril de 2020. Como ministro da Justiça, assume André Mendonça, aliado que corriqueiramente aproveita o cargo para colocar a PF contra críticos do governo Bolsonaro — algo que Moro já havia referendado, vale ressaltar.
Com o “terrivelmente evangélico” no Ministério da Justiça, Jair Bolsonaro indica ao STF o nome de Kassio Nunes, um crítico da Lava Jato sugerido por Wassef e referendado pelo centrão. Durante a negociação, o presidente da República e o indicado pagam visitas a Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Davi Alcolumbre — para máxima indignação dos militantes governistas.
Não há notícia de que Felipe Santa Cruz participou dos encontros. Mas há a de que, de tão satisfeito com a indicação de Kássio Nunes, o presidente da OAB se aproxima de Flávio Bolsonaro. A ação contra o foro privilegiado do Zero Um no caso Queiroz seria redistribuída para o mais novo ministro do Supremo. Em janeiro de 2021, mesmo com as maiores cidades do Norte do país em colapso por obra das sabotagens de Jair Bolsonaro no combate à covid-19, Santa Cruz seguiria sem ver “clima para impeachment“.
Em 1º de setembro de 2020, Deltan Dallagnol, que vinha sofrendo com a pressão de Augusto Aras, deixa a força-tarefa da Lava Jato. No dia seguinte, a pedido do PGR, todos os processo da Lava Jato que ascendem ao STJ passam a ser encaminhados à subprocuradora Áurea Maria Etelvina Pierre. Passado mais um dia, alegando “incompatibilidades insolúveis com a atuação da procuradora Viviane de Oliveira Martinez“, a força-tarefa da Lava Jato de São Paulo pede demissão coletiva.
Na semana seguinte, Lula se intromete numa briga entre Bolsonaro e Moro para publicamente defender o presidente da República. Bolsonaro, por sua vez, ainda que tentasse se safar espalhando a versão fantasiosa de que não há mais corrupção no Governo Federal, nem disfarçaria que teve papel ativo no fim da operação.
Oficialmente, a Lava Jato original deixa de existir em 3 de fevereiro de 2021, dois dias após Jair Bolsonaro emplacar Arthur Lira, réu no inquérito aberto pela força-tarefa, na Presidência da Câmara Federal. E de Rodrigo Maia concluir 4 anos e 7 meses na linha sucessória sem aceitar qualquer um dos mais de 60 pedidos de impeachment já protocolados contra Jair Bolsonaro.
Na prática, a Lava Jato acabou em 8 de novembro de 2019, quando concretiza-se o pacto proposto por Toffoli assim que assumiu a presidência do STF, e mais uma vez cai a possibilidade de execução de pena para condenados em segunda instância.
Era um grande acordo nacional, com Supremo, com Bolsonaro, com tudo, que protegia Lula, protegia Flávio Bolsonaro, protegia todo mundo. Mesmo assim, ou até por isso, o petismo o festejou madrugada adentro.
O crime cometido por Omar Vítor, o fazendeiro que primeiro conseguiu o fim da prisão após condenação em segunda instância, como esperado (e almejado), prescreve em 2014 sem o condenado cumprir qualquer pena por ter atirado na cabeça e na coluna de Dirceu Brandão.
E quem é Dirceu Brandão? Alguém que, para as instâncias superiores do Brasil, pode tomar tiros na cabeça e na coluna sem que nenhuma justiça seja feita contra quem lhe causou tanto mal.
Até 2018, ou 27 anos após o crime, uma bala seguia alojada no corpo da vítima.
Fontes
Esse texto só pôde ser escrito graças ao trabalho de uma imprensa profissional que apurou as informações referenciadas mais acima, e que aqui embaixo é reverenciada: Agência Brasil, BBC Brasil, BR Político, CNN Brasil, Consultor Jurídico, Crusoé, El País Brasil, Época, Estadão, Estado de Minas, Folha de S.Paulo, G1, O Antagonista, O Globo, Piauí, Thais Oyama, UOL, Valor Econômico e Veja.
Não existe país decente sem imprensa livre.
