‘Você é neurótico‘. Eu havia iniciado aquelas sessões para investigar se possuía algum grau de autismo. Cumpria sugestões de meia dúzia de experimentos acadêmicos acessíveis na web. Nos testes, os resultados sempre me descolavam das pessoas que definitivamente não são autistas, mas também não iam além da indicação da busca por ajuda profissional. O diagnóstico recebido, no entanto, não dispararia a rede de solidariedade que conforta alguns casos próximos a mim. ‘Neurótico’, inclusive, é crítica comum e até pejorativa a indivíduos que, como eu, corriqueiramente externam preocupações excessivas. Na cultura pop, por exemplo, só me remetia à versão brasileira do título de Annie Hall, premiado filme de um diretor que anda mais cancelado do que nunca. Nem o verbete da Wikipedia, com apenas três referências online sobre neurose, servia de bom ponto de partida para pesquisa mais detalhada.
Do pouco que consegui compreender, é como se minha mente, em qualquer situação que escape da rotina, traçasse caminhos possíveis, optando sempre pelo mais trágico para, em seguida, preparar meu corpo para batalhas no pior cenário, mesmo que tal cenário mal se pareça com a realidade. Trata-se de uma lógica bem distinta da de uma namorada que, há 15 anos, se empolgou com a notícia de teríamos uma pessoa cega estudando conosco. Ela viu no comunicado um sinal positivo de que nossa sociedade avançava ao ponto de conseguir recepcionar alguém com deficiência visual em curso tão avançado. O neurótico aqui, no entanto, viu um alerta.
Meu medo era de que o esforço coletivo para que o novo aluno conseguisse nos acompanhar findasse atrasando o desenvolvimento de toda a turma. Temia, inclusive, que algum tipo de chantagem emocional fosse usada contra quem ousasse reconhecer a dificuldade. Mas meu preconceito não podia estar mais equivocado.
O colega era dono do melhor senso de humor do grupo. Era o primeiro a fazer graça da própria condição, tornando mais leves aulas que tantas vezes abordavam assuntos densos. E demonstrava conhecer o ambiente melhor do que muita gente que enxergava, corriqueiramente dispensando ajuda para percorrer longos trajetos no campus.
Com o tempo, ele próprio passou a colaborar com o desenvolvimento dos demais. Com um gravador que subtraía momentos de silêncio, condensava horas de aula em minutos de áudio. E compartilhava os MP3 para que estudássemos para provas com material bem mais completo do que nossas anotações.
Certa vez, comentou ter lido em uma tarde o até então maior volume da saga Harry Potter, concluindo a leitura antes da minha namorada, que há dias devorava sem conclusão o trabalho mais recente de J. K. Rowling. Perguntei se braille permitia uma leitura tão mais veloz, mas ele me explicou que utilizava softwares que transformavam PDFs em arquivos narrados por vozes robóticas que já se assemelhavam bastante à fala humana. Com o ouvido treinado para locuções mais frenéticas que avisos finais de comerciais de remédios, o amigo cego lia mais rápido do que todos nós que enxergávamos.
Lembrei de nossa conversa quando, durante a pandemia, fui contratado pelo Estadão como analista de audiência, uma espécie de ‘pauteiro do século XXI’. Para sugestões certeiras, era necessário uma leitura profunda de um jornal que publica uma média de 250 notícias por dia. Acionei a Lei de Pareto, mas mesmo a leitura do quinto mais relevante daquele mundo de informações me consumiria um terço de um expediente que também precisa se dedicar a reuniões e análises de gigantescas bases de dados. Para completar, o isolamento social havia devolvido à agenda afazeres que eu já conseguia terceirizar. E, como Juliano Nobrega curte enfatizar em uma das newsletter mais interessantes das que acompanho (assine aqui), vivemos as mesmas 24 horas dos CEOs mais disputados do planeta.
A solução foi ocupar o tempo ocioso dos meus ouvidos, o que libertava mãos e olhos para atividades mais braçais. Com os recursos de voz do Pocket, conseguia consumir o noticiário escrito enquanto trocava a ração dos gatos, preparava o café da manhã e lavava a louça. Com a voz da Alexa no meu celular, concluí no Kindle a leitura de 14 livros em seis meses, uma marca tímida para muito acadêmico, mas gigantesca para quem, como eu, empilhava na estante trabalhos ainda fechados. Com o auxílio do Voice Dream, prestigiava artigos mais longos enquanto quitava caminhadas dominicais nas ruas da vizinhança. Quando deixei acumular algumas aulas do curso de Pedro Doria, converti o vídeo em áudio, o que me permitiria acompanhar o assunto mesmo se atrasado em algum engarrafamento. E, quando o noticiário estava excessivamente quente, o voice over do iOS me permitia acompanhar as notificações dos principais veículos sem necessariamente tirar mãos e olhos do laptop.
O formato infelizmente me subtraiu a capacidade de grifar trechos que podem render notas em voltas ao conteúdo. Mas ampliou de 20 para 50 a média de páginas lidas por hora, o que pode ser melhorado caso eu me permita acompanhar em texto o que me narra uma das muitas vozes do Voice Dream — acompanhar a leitura com olhos e ouvidos se provou uma ótima forma de manter o foco no que interessa.
Tais alternativas possivelmente nem passariam por minha cabeça se um dia a vida não tivesse me colocado na mesma sala de aula de um jovem que havia sobrevivido sem visão a dificuldades no parto. Ou mesmo se eu não tivesse vencido preconceitos e domado ‘neuras’ para conhecer alguém tão diferente e, ao mesmo tempo, tão igual a todos nós. A ele, eu não poderia ser mais grato. Mas prefiro concluir o relato sem citar-lhe o nome — sei da capacidade de a web fazer a pior leitura possível de exatamente qualquer gesto, mesmo os mais bem intencionados.
